Proibida de ler pelo pai, paraibana é aprovada em universidade federal e ensina na escola onde voltou a estudar
Por Redação com G1 - em 8 meses atrás 118
As letras desenhadas com gravetos em qualquer pedaço de terra prometiam descortinar um futuro esperado e sonhado, mas ao mesmo tempo incerto para Josineide Barbosa da Silva. Proibida de ler e escrever pelo pai no começo da adolescência, a paraibana, de 55 anos, voltou a estudar aos 35. Hoje, depois de uma longa trajetória marcada por dificuldades, desafios e vitórias, ela é psicopedagoga e não só aposta, mas ensina como a educação pode transformar vidas.
Os passos da estrada trilhada por Josineide começaram a ser dados um a um ainda em Bayeux, cidade que fica a pouco menos de 20 quilômetros da capital João Pessoa. A fome, a dificuldade financeira e a falta de emprego fizeram com que a família dela se despedisse da terra natal e mirasse o Rio de Janeiro como um refúgio, um terreno fértil de oportunidades.
Os pais analfabetos, um pedreiro e uma dona de casa, não enxergavam a educação como uma prioridade. Afinal, colocar comida na mesa demandava um esforço maior do que deveria. E essa garantia pareceria ser o mais importante.
Ao mesmo tempo, a ansiedade para aprender a ler e escrever fez com que Josineide usasse os recursos que, embora talvez inimagináveis, estavam disponíveis e não custavam nada além de uma pouco da boa vontade dela.
“Eu já rabiscava o chão. Não podia ver um graveto. Desenhava as letras no chão. Fui crescendo assim com essa inquietação”, lembrou de quando fazia o chão de caderno, com o saudosismo saltando pela voz.
No seio familiar, Josineide era a primogênita, a mais velha entre sete irmãos. Só que isso apenas na teoria. Na prática, tomava conta da casa e era a babá dos mais novos.
“Eu servia dentro de casa como uma mão de obra, porque eu ajudava minha mãe a cuidar dos meus irmãos e da casa. Minha mãe tinha esquizofrenia. De vez em quando ela surtava”, recordou enquanto respirou fundo e teve de volta à mente algo que não quer reviver.
Por isso, depois de muita insistência, Josineide entrou na escola somente aos oito anos. Mesmo na infância, quando tudo deveria ser divertido, foi como aliviar um peso carregado diariamente sobre os ombros.
“Quando eu entrei na escola pela primeira vez foi incrível. Quando eu coloquei meu pé naquela sala, foi algo maravilhoso. Foi como se eu me despertasse pra vida e passasse a olhar pra mim, já que a minha vida inteira eu só cuidava dos outros. Eu cuidava da minha mãe, ajudei a criar meus irmãos”, reforçou enquanto lembrou de quando descobriu um mundo cheio de cor.
Em casa, tudo mudava. Ficava cinza, sem espaço para a imaginação. Nem um conjunto de caderno e lápis podia ficar ao alcance da visão. A rotina doméstica exigia tarefas que ocupavam tanto tempo, que não podiam ser conciliadas com os estudos.
Por outro lado, rapidamente Josineide foi alfabetizada. Passou a ler e escrever de forma natural e fluida. Viajando pelas páginas dos livros, encontrou conforto, que só sentia quando era abraçada pelas folhas amareladas dos raros romances que mais raramente ainda conseguia ler.
“Não tinha biblioteca acessível. Eu fuçava nos lixos”, lembrou que era assim que encontrava esperança em forma de verso e prosa.
Em uma passagem pela feira, tropeçou na sorte de encontrar um senhor – jamais esquecido – que a ajudou com vários exemplares emprestados.
Os preferidos, desde o início, sempre contaram histórias de amor, que precisavam ser escondidos da família, especialmente do pai.
Formatura de Josineide Barbosa da Silva em Letras — Foto: Josineide Barbosa da Silva/Arquivo pessoal
‘Você só estudou até hoje’
A doçura nas histórias dos livros, além de dispersar a amargura de uma vida difícil, despertou em Josineide o desejo de escrever poesias.
“Tudo eu fazia sem que meu pai soubesse. Ele era muito bruto”, rememorou.
Nas poesias, a então adolescente costumava remontar retratos da realidade dela, principalmente sobre a solidão, que estimava como principal companheira.
“Como é triste a solidão / Faz meu coração pesar de angústia / No entanto, me encontro aqui / Sozinha / Eu e a solidão / Eu por querer ficar só / E a solidão por ser sozinha”.
As sequências de rimas organizadas em estrofes eram escondidas debaixo do colchão da cama onde Josineide dormia.
Quando o pai descobriu, depois que a mãe tudo encontrou durante uma faxina, os versos que tanto encantavam, primeiro queimaram e depois viraram cinzas que se dissiparam em um ar que ficou difícil de ser respirado.
“Eu não tenho filha pra estar estudando e escrevendo safadeza”, esbravejou enquanto também expressou preocupação com o gasto de papel que acolhia os poemas.
O que aconteceu na casa de Josineide, infelizmente foi artigo comum e rotineiro em muitos outros lares.
“Comum em função de uma época em que conteúdos, dessa natureza, para mulheres, tornava-se ameaça para boa parte dos homens e famílias. Além de um machismo estrutural não localizado somente no Brasil”, refletiu a professora doutora Kátia Campos. Veja no fim desta reportagem o recorte histórico feito pela especialista sobre a educação feminina no país, desde o início, aos avanços e ao que ainda precisa ser alcançado.
Depois desse momento, outra decisão, ainda mais forte e dura, foi sentenciada.
“Você só estudou até hoje”, e assim o pai da paraibana deu um ponto quase final na vida escolar dela.
O pai de Josineide foi até a escola e não trancou apenas a matrícula da filha, mas uma porta que ficou fechada por bastante tempo.
Essa é uma lembrança que, inevitavelmente, surge com o choro que mistura nuances de trauma, mágoa e de um passado que não pode ser apagado. Mas que, sem dúvidas, ficou para trás.
Josineide construindo recursos adaptados para alunos com deficiência — Foto: Josineide Barbosa da Silva / Arquivo pessoal
Livros: os primeiros desempoeirados do dia
Junto com a proibição de estudar, Josineide logo recebeu uma nova ocupação. O pai arranjou um trabalho de empregada doméstica para a filha mais velha. No início da adolescência, com apenas 13 anos, a professora teve que dar conta da limpeza de duas casas, onde sofreu inúmeros abusos, silenciados cada vez mais pelo tempo e pela vulnerabilidade que a necessidade lhe impunha.
“Minha patroa fazia eu arear 38 panelas. Meus dedos ficavam ruídos. Ela dizia que só ia ficar limpa quando eu visse o meu rosto na panela. Até hoje eu tenho pavor de arear panela”, contou com a voz um pouco enjoada.
E esse nem foi o contexto mais absurdo que Josineide vivenciou nesses locais de “trabalho”.
“Você vai trabalhar na casa da minha filha também. Seu pai disse que quer você ocupada”, berrou a patroa de um jeito frio, que não foge da lembrança mesmo depois de décadas.
Antes de enviá-la ao trabalho, o pai da psicopedagoga ainda fez recomendações claras e incisivas sobre o dia a dia da filha.
“Eu não tinha tempo mesmo pra escrever como meu…”, o relato foi interrompido pela emoção do choro, pela voz trêmula.
“Ele queria mesmo que eu não tivesse tempo. Disse pra ela que não desse nenhum papel e nenhuma caneta na minha mão”, lastimou ao mesmo tempo em que concluiu o raciocínio.
A rotina era sempre igual. Das 6h às 16h trabalhava na casa da patroa mãe. Das 16h às 23h, na casa da patroa filha.
A cor do pagamento recebido pelo trabalho, Josineide nunca conheceu. Recebia o dinheiro um pequeno envelope e sem sequer abri-lo, o entregava nas mãos do pai. Esse era o combinado.
“Eu não tinha roupa, não tinha sapato. Eu não tinha nada”.
Mas havia um refúgio no meio de tanta intransigência: os livros, que eram os primeiros desempoeirados do dia durante os afazeres domésticos em ambas as casas.
Nessas casas, que nunca pareceram e puderam ser chamadas de lar, Josineide passou dois anos. Só encontrava a família a cada 15 dias.
Quinzenalmente, em casa, nem televisão ela podia assistir. Aos 15 anos, voltou para a Paraíba. Com pouco tempo de volta à terra natal, encontrou inesperadamente o amor.
“Quando virei na esquina já me encantei por ele”, recordou sobre quando viu o marido e pai dos filhos dela pela primeira vez.
Em busca de mais oportunidades, o casal se mudou para São Paulo. Na metrópole, foi desempenhando a função de diarista que ajudou sustentou filhos junto com o companheiro. Todo dia uma casa diferente. Mas agora de um jeito também distinto. As patroas quase todas eram professoras.
Mas criando os filhos com tanta dificuldade, não sobrava tempo para estudar.
Mas mesmo assim, recebia o incentivo das novas chefes. Esse encorajamento funcionou como uma semente plantada no coração dela.
Os filhos cresceram e ficaram adolescentes. Eles também passaram a incentivá-la.
Josineide com o marido e os filhos — Foto: Josineide Barbosa da Silva/Arquivo pessoal
‘Mainha, vá estudar. Volte pra escola’
De volta à Paraíba, Josineide se encheu da vontade de trabalhar. Mas na hora de montar o currículo, não tinha formação para informar, “apenas que era diarista e faxineira”.
Mesmo sem estudar, a paraibana fez um concurso para agente de saúde em Bayeux e foi aprovada. Mas sem estudos, não conseguiu assumir a vaga.
“Eu fiquei muito triste. Isso foi o pontapé inicial pra eu voltar a estudar”, determinou.
Mas antes disso, apelos constantes deram ainda mais força para Josineide.
“Mainha, vá estudar. Volte pra escola”, diziam os filhos dela.
No dia seguinte, ela fez a matrícula em uma turma da educação de jovens e adultos (EJA). Foi assim que quase três décadas depois, Josineide voltou a sonhar e a correr atrás dos próprios sonhos.
Os pés que tocavam o chão da escola, não pisavam apenas no piso, mas encostavam em um mar de oportunidades, que foram agarradas com toda a intensidade de uma vida cheia de desafios.
“Um dia eu quero ser professora nessa escola”, sentenciou.
Depois disso, alguns anos se passaram entre a conclusão do ensino fundamental, médio, magistério e ensino superior.
Logo no magistério, Josineide se identificou com a educação infantil. Depois, cursou Letras com habilitação em Língua Portuguesa. Enquanto isso, passou em Psicopedagogia na Universidade Federal da Paraíba.
“Quando cheguei na federal e coloquei meu pé ali, eu chorei. Eu nem acreditava naquilo tudo que tava acontecendo na minha vida”, se emocionou.
A mesma universidade ainda reservou outros motivos para comemoração. Nela, outros membros da família se formaram.
Josineide construindo recursos adaptados para alunos com deficiência — Foto: Josineide Barbosa da Silva/Arquivo pessoal
‘Estou trabalhando há 15 anos na escola onde voltei a estudar
A cada assunto, uma nova emoção emerge pelos olhos de Josineide. Dessa vez, ela chora de alegria ao contar sobre uma de suas maiores conquistas.
“Atualmente, eu estou trabalhando há 15 anos na escola onde voltei a estudar. Quando me dei conta disso, vi a importância da minha história”, suspirou.
Na escola Joaquim de Brito, ela é contratada pelo município e atua em uma sala de recursos multifuncionais.
Não restam dúvidas, portanto, que a educação é algo de muita afeição para a paraibana.
“Eu digo sempre, a educação transformou a minha vida. Ela transforma histórias. E a partir dela, eu posso também contribuir pra transformação de outras histórias de vida”, combinou.
Por tudo que já foi dito, Josineide fez questão de não repetir com os filhos, o que passou dentro de casa.
“Eu sempre priorizei os estudos deles”, mesmo com os desafios sendo a cada dia maiores. “Eu fazia questão, ia madrugar nas filas atrás de vaga”.
O vai e vem entre deixar e buscar os filhos na escola hoje é motivo de nostalgia, saudosismo e conversa boa.
“Até hoje eu comento com o Júnior. Quando ele tinha cinco anos a gente morava em uma favela (situada em um morro). Tirava o sapato e a meia, levava na mão, subia escorregando. Em cima, eu lavava os pés dele numa poça de água e colocava a meia, o tênis e levava pra escola”.
Tudo era feito com prazer, porque ela queria ver todos formados.
O esforço deu resultado. Hoje, dos quatro filhos de Josineide, um é médico, uma é professora, outra não terminou a universidade, mas trabalha na área administrativa, e o mais novo estuda ciência da computação.
Na formatura de medicina de Júnior, o médico, ele fez questão de frisar a importância de chegar onde chegou sendo filho de uma diarista e um pasteleiro.
“Onde ele está, ele fala muito da minha história. Me sinto realizada como mãe. Meu filho esta onde está, vindo de onde veio”, destacou.
Talvez quem conheça a história de Josineide, do passado a nova fase, imagine que ela já esteja satisfeita. Não é mentira, mas ainda há muito a ser desbravado.
“Já vivi meia vida / Achei que sofri a vida inteira / Mas a felicidade começa agora / E ela faz de mim guerreira / Ainda tenho mais meia vida / E ser feliz é a minha meta / Se a felicidade me convida / Se feliz é o que me resta”.
‘Para o futuro, eu tenho sonhos’
Embora tenha conquistado muito ao longo da vida, falta uma vitória que ainda é muito desejada por Josineide.
“Para o futuro, eu ainda tenho sonhos. Eu ainda não tenho uma casa”, lamenta ao mesmo tempo que transparece a esperança de um dia tê-la e nela viver.
No novo lar, Josineide quer abrir um espaço para fazer atendimento com crianças. Dele, ela pretende tirar o sustento e também oferecer trabalho voluntário para quem não tem condição de pagar.
“Eu tenho muito ainda pra conquistar. Eu creio”, disse em tom de “assim seja”.
“Então me deixe sonhar / E sonharemos juntos / E teremos o que escrever / E esse conteúdo / É o meu melhor assunto / Para você que não sonha / Eu sinto muito”.
Dos conventos à permissão para frequentar salas de aula
Muitas outras meninas passaram por situações iguais ou parecidas com as de Josineide. Para entender esse contexto, o g1 conversou com a professora Kátia Campos.
No Brasil, estudar só foi algo permitido às mulheres por volta da metade do século XVII. Na época, conforme explicou a professora, os conventos funcionavam como escolas, e a missão de ensinar era das religiosas.
Porém, nada era tão parecido com as escolas de agora, não havia uma estrutura formalizada de ensino. Como os conventos também eram as representações de locais de acolhimento e recolhimento de moças deixadas pelos pais, a instrução era o ensino da leitura, escrita e atividades do espaço doméstico como o artesanato, bordado, costura e música.
“Os conventos muitas vezes serviam de alternativas para os pais deixarem suas filhas com o receio de divisão de bens aos pretensos genros. Também acolhia mulheres deixadas pelos maridos”, destacou Kátia.
Enquanto isso, no período colonial, as escolas ficaram eram de responsabilidade de padres jesuítas. Nelas, os ensinamentos eram voltados para homens brancos e destinados para a formação religiosa e valores de uma pequena elite culta.
Mais tarde, com a Reforma Pombaliana (quando os jesuítas foram expulsos das colônias portuguesas, a educação passou da responsabilidade deles para o Estado), as mulheres ganharam permissão para frequentar as salas de aula, desde que separadas dos homens. Mesmo assim, poucas pessoas tinham esse acesso, já que a instrução era um direito de poucos em função das questões de classe e raça.
“Já por volta de 1808, com a chegada da corte ao Brasil, surgiram interesses de instrução para o ensino de meninos e meninas em casa, enquanto forma de uma melhor apresentação da família”, explicou a especialista.
A escola é para todos?
Embora a escola seja um ambiente em que todos (meninos e meninas) podem estar, Kátia explicou que o ambiente ainda não avançou totalmente em alguns aspectos.
“A escola está para todos/as, mas lidamos ainda com situações discriminatórias com base no gênero, a exemplo da resistência, ainda, da docência do homem professor na educação infantil”, refletiu.
Já o pouco acesso à educação, especialmente por parte das meninas, pode dificultar o caminho até a obtenção de direitos.
“Dificulta, uma vez que, o conhecimento instrumentaliza a luta da pessoa na vida. Conhecer é fundamental para a busca e a vivência de direitos, bem como para a própria sobrevivência em todos os sentidos”.
Entre as dificuldades para o acesso de meninas à educação, a especialista elenca os seguintes desafios recorrentes.
- A entrada precoce de meninas no mercado de trabalho;
- Meninas que sofrem variadas violências, sobretudo, abuso;
- Gravidez precoce;
- Preconceitos raciais, de classe e gênero, entre outros;
- Famílias destituídas de uma sobrevivência digna, cuja ideia de educação não é prioridade. Situação última retroalimentada pela falta de esperança da própria sobrevivência.
Kátia destacou, também, que avanços podem ser consolidados a partir de algumas ações, a exemplo de redes de apoio mais eficazes em relação à proteção física e psicológica da mulher; a produção de uma educação cultural, não somente nas instâncias educacionais; políticas efetivas que favoreçam a equidade entre homens e mulheres em todas as instâncias sociais, que vai da responsabilidade doméstica ao mercado de trabalho.