Quem disse que não é para tomar a vacina do sarampo?
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Dois anos após o sarampo ter sido oficialmente riscado do nosso mapa, a Organização Mundial de Saúde soa o alarme: o Brasil volta a correr o risco de surtos da doença. Então, vou ser direta: quem foi que disse que não é para tomar a vacina de sarampo? Que tipo de seita, curandeirismo, fakenews, movimento — termo que pode guardar as alternativas anteriores e outras mais — que as pessoas deram para seguir?
O sarampo é uma doença ruim da peste. Mata. Se o próprio o Morbillivirus, um assassino serial da pior espécie, não faz o serviço sujo nos pulmões, ele permite que outros matadores ajam, como bactérias causadoras de pneumonias que atacam principalmente crianças. As complicações neurológicas que o vírus por trás do sarampo provoca também são terríveis. Ele pode originar uma otite que leva à surdez parcial — marca inesquecível de sua passagem pelo corpo. E, em casos mais raros, vai para o sistema nervoso central, onde dispara uma encefalite das mais cruéis.
Infectada, a pessoa apresenta exantemas, manchas vermelhas que nunca coçam. Elas lhe estampam o pescoço e, a partir dele, têm roteiro certo: sobem pela face, depois cobrem o tronco, até se esparramarem pelos membros. Nesse meio-tempo, vem a febre alta. O termômetro fica nas alturas por três ou quatro dias, enquanto a criatura tosse, tosse, tosse… Ou espirra, espirra, espirra. A coriza é intensa. A conjuntivite, insuportável, aumentando demais a sensibilidade à luz.
Mas não pense que esse é o início da história. Se fosse, seria fácil. “Quem está com o vírus começa a transmiti-lo de quatro a dois dias antes de apresentar qualquer sinal de estar doente, quando anda de um lado para outro com ótima aparência”, avisa a farmcêutica bioquímica Marilda Siqueira, chefe do Laboratório de Vírus Respiratório e do Sarampo do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), no Rio de Janeiro, que é referência para a América do Sul.
Esse é um dos vírus mais contagiosos de que se tem notícia. Cada vez que uma pessoa infectada expira ou pronuncia uma palavra, ela lança no ar gotículas microscópicas de saliva que guardam, feito bolhas, milhões de cópias para pronta-entrega do Morbillivirus . Bastam que sejam tragadas por quem estiver por perto e já era: nove em cada dez indivíduos não vacinados, que perambularem pelo mesmo ambiente, contrairão o sarampo.
Para Marilda Siqueira, a ameaça de o sarampo retornar foi um soco no estômago. Ela lembra que, em 1992, quando o Brasil já tinha erradicado vitoriosamente a varíola e a poliomielite, as autoridades de saúde resolveram enfrentar aquela que, até então, era a segunda maior causa de mortes na infância em todo o planeta. O sarampo matava 2,5 milhões de crianças por ano no mundo.
O esforço, capitaneado pelo Ministério da Saúde, foi para que todos os brasileiros menores de 14 anos recebessem a vacina, ou seja, 48 milhões de crianças e adolescentes de Norte a Sul, independentemente de já terem sido vacinados ou não. Não se deixou brecha. E funcionou: em 2016, recebemos o certificado de erradicação.
“Agora, para que a doença não volte, o cenário merece total atenção”, diz Marilda Siqueira. Já foram notificados 358 casos no Amazonas — 333 deles, em Manaus — e perto de 250 em Roraima, dois estados que fazem fronteira com a Venezuela, onde a controle da infecção se desgovernou. Os genes do vírus que circula por aqui são 100% iguais aos do vírus venezuelano. Nós o importamos.
O sarampo nunca foi embora da Ásia, nem da África. E, com os movimentos migratórios, volta a aterrorizar a Europa, que hoje amarga um crescimento de 400% de infectados. Não se deve acusar quem busca um novo lugar para viver — algo mais antigo do que os relatos bíblicos. Mas, penso, é para se responsabilizar quem não vacina uma criança, colocando em risco não só a vida dela como a de muita gente com quem ela cruza na escola, no caminho do parque, no transporte público, na casa dos avós.
Antes da vacinação, o sarampo fazia um grande número de vítimas mais ou menos a cada três anos. Era o tempo necessário para que surgissem o que Marilda Siqueira chama de bolsões de suscetibilidade, ou seja, grupos numericamente consideráveis de indivíduos que nunca tiveram contato com o vírus e que, portanto, viravam presas fáceis. E, de certa maneira, é o que faz a onda contra a vacinação: cria bolsões de suscetibilidade.
A vacina oferecida no Brasil é a tríplice viral, que protege contra o sarampo, a caxumba e a rubéola, em uma injeção dada aos 12 meses e outra, aos 15 meses. Se os pais sabem que a criança não recebeu o imunizante ou não tomou a dose de reforço, devem ir a um posto de saúde com a carteirinha e pedir a aplicação. “Não importando, aí, se já passou a idade”, nos informa Marilda Siqueira.
Ah, o sarampo é considerado uma doença de infância porque as crianças são as vítimas preferenciais, mas ele pode atacar adultos, em especial idosos e gente que está com a imunidade baixa.
A vacina é uma boa para qualquer criança e não apenas para quem mora em estados de fronteira ou vive em comunidades desfavorecidas. O vírus pode infectar, sem distinção, o menino que tem o privilégio de passar férias na Europa — imprudência embarcar sem ser vacinado, se o passeio for na França, na Inglaterra ou na Itália, por exemplo. Na realidade, aqui ou lá, o seu filho pode cruzar pelas ruas com alguém que visitou regiões de surto e trouxe o sarampo na bagagem.
O mundo não para quieto e você deveria pensar mais nisso em vez de consumir seus neurônios com teorias conspiratórias de que alguém ganha alguma coisa a mais com tanta vacinação. Ainda que a ideia fizesse sentido, raciocine: só se for lucrar por lhe manter vivo. Aí talvez…
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