Escritor picuiense publica novo livro com crônicas inéditas que falam de memória, referências literárias, personagens do cotidiano, dores e amores

Por Redação com Tiago Germano - em 8 meses atrás 275

As mudas do novo livro de crônicas do escritor e jornalista picuiense Tiago Germano, “A índole dos cactos”, acabam de ser plantadas. Cinco anos depois da sua primeira indicação ao Jabuti com o “Demônios domésticos”, Tiago volta a publicar mais um livro com mais de 60 crônicas inéditas que falam de memória, referências literárias, personagens do cotidiano, dores e amores.

Veja abaixo uma das crônicas publicadas;

“Picuí

Meu sotaque é produto híbrido de idas e vindas entre o Sul e o Sudeste, emulando vogais fechadas e consoantes retroflexas, cuja articulação era o que me separava do exílio no recreio à sobrevivência na sala de aula. Além desse sotaque mutilado, que confunde meus interlocutores com a minha origem, meu passado dentro da própria Paraíba é difícil de explicar. Morei a maior parte da idade adulta no Litoral, mas vivi a infância no Brejo e a adolescência na Borborema, tendo nascido no Seridó, numa pequena cidade conhecida pela sua carne de sol e pelos restaurantes que levaram seu nome até muito longe: Picuí, um município próximo à divisa do Rio Grande do Norte com pouco mais de 18 mil habitantes e uma vocação para o literário que eu preciso tentar traduzir numa crônica.

Como quase toda cidade do interior, Picuí orgulha-se de ser capital mundial de alguma coisa. No seu caso, como eu disse, a carne de sol, tema de um festival que tinha como ponto alto a competição do maior comedor de carne de sol do mundo. O título era defendido anualmente por alguns atletas do garfo que ficaram famosos na região. Um dos primeiros deles, chamado Miguel Gonçalves, chegou a ir ao Jô Soares pelo feito de comer um quilo e 280 gramas de carne de sol em exatos 15 minutos, depois de vencer um idoso de 72 anos que comeu um quilo de carne, mas não ficou para receber o prêmio de consolação porque, segundo se conta, estava atrasado para a janta.

Lembro-me desses concursos realizados no coreto da cidade, na frente da igreja matriz, dos homens enfiando mantas inteiras de carne de sol na boca, mastigando os pedaços com a ajuda de litros de refrigerante e engolindo o mais rápido que podiam para abrir espaço para mais comida. As bochechas se inflavam como as dos trompetistas da banda marcial, na tradicional ‘Alvorada ao amanhecer’. Prestes a se esgotar o tempo de 15 minutos, cronometrado a rigor pelos juízes, já nem se mastigava mais a carne: valia o que estivesse na boca, então o importante era esvaziar o prato e colocar o máximo que se podia pra dentro, não importava como se ia engolir. Só tinham que engolir porque, claro, os concorrentes podiam ser desclassificados se regurgitassem todo o bolo alimentar. A competição era literalmente para estômagos fortes, tanto para quem disputava quanto para quem assistia: uma turba ensandecida que, por vezes, enjoava só de olhar, engasgando e engulhando muito mais que os próprios comilões.

A festa da carne de sol era famosa também pela corrida de jegues e pelos torneios de vôlei de açude, dois esportes que, se dependessem de Picuí, teriam se tornado olímpicos muito antes do esqueite. Ano a ano, centenas de pessoas se reuniam nas ruas de paralelepípedo e no parapeito da ponte, logo na entrada da cidade, para ver os jumentos montados disputando e os atletas da bola ralando os joelhos na terra batida de um açude seco, já que não chove muito na cidade, e o máximo que se podia fazer era molhar a areia com a água dos caminhões-pipa que a prefeitura disponibilizava.

Falando nisso, engana-se quem acha que a fama de Picuí se deve apenas à carne de sol. Picuí é também a terra do picolé caseiro, tema de outro festival que elevava os brios da população obcecada com outro recorde: o do maior picolé do mundo, um sorvete de quase três metros que chegava à cidade num caminhão frigorífico e tinha que ser erguido com um guindaste em meio ao povo, aglomerado na rua esperando a vez para chupar o sorvete direto do palito e levar enrolado na camisa algum pedaço daquele iceberg que começava a se derreter no meio da rua, se despedaçando e fazendo a turba se estapear em praça pública, lambendo os paralelepípedos e se misturando numa massa grudenta e colorida.

A Covid varreria Picuí do mapa, se existisse nessa época. Jamais teria havido essa Picuí em que nasci, e da qual não é difícil de me orgulhar justamente por render essas paródias, parte de um imaginário mítico povoado também por tragédias como a do cólera-morbo, que atingiu a região no passado e deu origem à fé em São Sebastião, o padroeiro que salvou a cidade. É dele a festa que se aproxima, agora em janeiro, que reúne os filhos desgarrados que sempre voltam à terra, esse espaço quase ficcional que corre no meu sangue e encharca as minhas páginas”.

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