Há 90 anos, nascia João Gilberto, símbolo do que o Brasil poderia ter sido
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Há 90 anos, em 10 de junho de 1931, a cidade baiana de Juazeiro via nascer um nome que se inscreveria para sempre não só na história da música brasileira, mas mundial. Anos mais tarde, João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, o João Gilberto, iria para o Rio de Janeiro, onde em julho de 1958 lançaria o que muitos consideram o marco fundador da bossa nova: o compacto em 78 rotações de “Chega de saudade”, composição de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, que do outro lado trazia “Bim bom”, do próprio cantor. O canto sussurrado e a batida de violão que sintetizava a batucada do samba tradicional marcaram aquela geração e as seguintes, levando a música brasileira a romper as fronteiras do país e a conquistar o mundo.
“Ele é um divisor de águas. A música brasileira é uma antes e outra depois dele. Tanto é que dos meus companheiros de geração, sem exceção, quando você pergunta como começou a se interessar e a querer fazer música, todo mundo unanimemente diz que foi muito impactado por ter ouvido o João pela primeira vez”, observa a cantora, compositora e instrumentista Joyce Moreno.
Ela pontua que a influência do artista, que morreu em 6 de julho de 2019 no Rio de Janeiro, desaguou em diversas vertentes musicais, como se fossem afluentes de um mesmo rio. “Foi uma coisa que realmente marcou todo mundo, e cada um seguiu seu caminho. Eu segui o meu, os baianos criaram o Tropicalismo, os mineiros criaram o Clube da Esquina. Tem uma segunda geração da bossa nova, Marcos Valle, Edu Lobo, Dori Caymmi, Francis Hime… Para todos nós, todos mesmo, o impacto foi o mesmo”, arrisca. Gal Costa confirma: “O impacto da bossa nova e, principalmente, de João Gilberto no meu canto foi radical e transformador. Aquele estilo me fascinou e mudou meu estilo de cantar”.
Joyce argumenta que, embora Tom Jobim e Vinicius de Moraes, entre outros artistas, já caminhassem no sentido daquilo que culminaria no estilo musical, foi o baiano que representou a ruptura com a música brasileira feita até então. “Tom e Vinicius já existiam quando chegou João com essa novidade dessa voz cantada que é quase uma voz falada – ele não imposta a voz nunca, canta do jeito que fala. A identidade que rola entre o violão e a voz, que é quase como se fosse um terceiro instrumento. Não é nem violão, nem voz: é uma coisa tão orgânica que funciona junto. A grande invenção é dele”, analisa ela.
O processo e seu catalisador
Autor do livro “Chega de saudade: a história e as histórias da bossa nova” (1990), o jornalista e escritor Ruy Castro defende que, embora a gravação de João para “Chega de saudade”, sobretudo, seja considerada um marco, ela foi resultado de uma série de mudanças que já vinham ocorrendo na música brasileira. “Aquilo não nasceu do nada. Aquela gravação dele em julho de 1958 era simplesmente a decantação de um processo que vinha há pelo menos dez anos e que envolveu uma grande quantidade de artistas, compositores, letristas, arranjadores, músicos, cantores, brasileiros, internacionais que já vinham em busca de uma coisa nova. Ao ouvirem o produto final, as pessoas não se deram conta de que tinham sido contemporâneas de um processo em evolução”, descreve Castro.
Para o autor, a bossa nova era inevitável: ela iria acontecer de qualquer jeito. Porém, foi catalisada daquela forma porque era João Gilberto que estava à frente. “Por uma série de fatores, calhou que fosse ele. O [João] Donato é um artista muito dispersivo, não está interessado em aglutinar, então não seria ele. O Johnny Alf era absurdamente tímido, então também não seria ele. O Tom… Não sei se o Tom teria isso como programa, de fazer uma coisa revolucionária. O Newton Mendonça, parceiro do Tom em ‘Desafinado’ e ‘Samba de uma nota só’, talvez tivesse. Era um grande pianista, um compositor, com umas ‘fumaças’ de vanguarda. Mas não teria condições práticas de fazer isso, porque ele era completamente sem ambição”, enumera Castro.
O jornalista e escritor analisa que o “Bruxo de Juazeiro” (como viria a brincar Caetano Veloso na música “A bossa nova é foda”, de 2012) reunia uma série de características que o tornaram a figura a estar à frente daquela novidade. “Era ambicioso, corajoso, tinha vontade de fazer — talvez por ter vindo da Bahia, ele queria existir, queria ser reconhecido. Ele sabia que era bom, que tinha uma coisa diferente para apresentar. Talvez por esse motivo tenha sido ele. E, além disso, por sorte foi ele, porque ele era um homem do samba, basicamente do samba. Diferentemente do Donato, que era muito voltado para o Caribe, do Johnny Alf, que era muito voltado para o jazz, do Tom, que era muito voltado para a música erudita”, defende.
Além do talento e ousadia, que o levaram a realizar uma obra reverenciada no mundo inteiro, João Gilberto tornou-se uma figura mítica também por sua personalidade. Em 1970, quando passou uma temporada de dois meses no México como integrante do grupo Luiz Eça & Sagrada Família (do qual também faziam parte músicos como Naná Vasconcelos e Nelson Angelo), Joyce conviveu de perto com João, que estava morando no México e volta e meia aparecia no hotel onde o grupo estava. “Todo mundo ficava apaixonado por ele. João era uma pessoa hipnótica. Ele era essa pessoa que envolve tanto você que você acaba ‘virando’ ele, sabe?”, diverte-se ela.
O Brasil ensolarado
Com o sucesso internacional da bossa nova, além da música, o mundo inteiro teve contato com o Brasil que aquele movimento representava. “Um Brasil ensolarado, jovem, que estava descobrindo as coisas, que estava numa época de modernização numa série de coisas, havia dinheiro sobrando, dinheiro acumulado desde a Segunda Guerra Mundial, a economia brasileira vinha muito bem naquela época, havia liberdade política, tudo isso facilitou”, pontua Ruy Castro.
E havia também uma descoberta do jovem. O jovem estava começando a tomar o seu espaço numa sociedade que era, até então, majoritariamente velha. “No Brasil, até 1960, uma pessoa que passasse dos 40 anos era considerada já quase de terceira idade. A expectativa de vida do brasileiro era de pouco mais de 50 anos de idade”, diz o escritor. Então, apareceu uma nova geração que se vestia de maneira diferente, que pensava de maneira diferente, que tinha outras aspirações e começou a ter um pouco mais de consciência sobre si mesma. “Essa era uma juventude universitária, urbana, basicamente carioca. E a bossa nova falava a língua dessa nova geração”, observa.
Joyce olha para essa questão com desencanto. Para ela, a bossa nova é o Brasil que deveria ter sido. “Eu venho repetindo muito isso, já quase virou um bordão”, diz. “Era um ideal de país que tinha ali, e não só na música. A arquitetura, o cinema, as artes visuais, a literatura, toda a cultura brasileira nesse momento, quando surge a bossa nova, no final dos anos 50, está em ebulição. E nada vem do nada, existia uma construção civilizatória deste país, que começa lá atrás, mas que vai se desenvolvendo aos poucos, e a cultura finalmente nesse momento explode em todas essas áreas.”
Para a artista, a impressão que se tinha era que, dali em diante, o país progrediria e seria exemplo para o mundo. “Infelizmente isso foi cortado seriamente, e vamos sempre tentando refazer e reconstruir à medida que se corta, à medida que se destrói, porque somos resilientes. Só que agora a gente vive num ritmo de destruição muito rápido”, lamenta a cantora e compositora.
A bossa continua
Se o ideal de país ficou no passado, o estilo musical se mantém relevante até hoje, como explica Ruy Castro. “A bossa nova emplacou lá fora e, emplacando nos Estados Unidos, você emplaca no resto do mundo. De lá ela foi para a Europa, para o Japão, e se instalou de tal maneira que nunca mais saiu. A bossa nova, como acontece com tudo nos Estados Unidos, foi incorporada à gramática musical praticada pelos americanos”, diz.
Joyce também atesta que o gênero veio para ficar. “A bossa nova permanece e é mundial. Eu transito muito na área do jazz, e nessa área todos, sem exceção, têm o seu disco brasileiro, o seu repertório brasileiro preferido, seja da bossa nova clássica dos anos 60, seja das canções brasileiras mais recentes, mas dentro desse caminho, dos filhos da bossa nova”, explica.
Produtor por trás de sucessos de nomes como Pabllo Vittar, Rodrigo Gorky é também um ávido colecionador de discos de vinil, e acrescenta que a bossa nova segue influenciando até a música pop, ainda que de forma diluída. “Várias das últimas coisas que eu tenho escutado têm muita coisa de bossa nova envolvida. Que vão nessa mesma pegada que a Anitta fez em ‘Girl from Rio’”, conta ele, citando o portorriquenho Bad Bunny, com o sucesso recente “Si veo a tu mamá”, de 2020, e o duo norte-americano Surfaces, com a música “24 / 7 / 365”, de 2017, que, assim como a música de Anitta, têm a mesma melodia de “Garota de Ipanema”, clássico de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. “No caso dessas músicas, a influência é mais direta, mas nem sempre ela vem direto da fonte”, diz.
Ele cita, por exemplo, a faixa “Castaways”, do desenho animado Backyardigans, que se tornou sucesso recentemente nas redes sociais. “É uma bossinha, e essa música viralizou muito no TIk Tok. E aí é até legal, que você tem vídeos de pessoas jovens tentando explicar: ‘Olha, isso aqui vem de bossa nova.’ Existem coisas muito peculiares de bossa nova que são usadas. Não somente para fazer coisas de bossa, mas também para ir para outros lugares. Tensões, e tudo, mais com músicas, em qualquer gênero, seja pop, seja… R&B também tem puxado bastante coisas de bossa”, conta.
Para ele, o fato de Anitta e outros artistas pop estarem recorrendo à bossa nova buscando conquistar o mercado internacional é sinal de força do gênero brasileiro. “Eles vão atrás disso porque o que o público hoje em dia quer consumir não é nada mais, nada menos que uma novidade familiar. Quando a Anitta usou [a melodia de] ‘Garota de Ipanema’, ela fez exatamente isso e acertou em cheio, porque ela está trazendo algo novo, mas extremamente familiar”, pontua.
Para ele, outro acerto do clipe de “Girl from Rio” foi contrapor a imagem representada pelo Brasil da bossa à do Brasil representado pelo funk, estilo que Anitta cantava quando começou sua carreira musical. “Quando rolou essa coisa toda da bossa nova lá fora, tinha uma finesse ali que não traduzia necessariamente tudo o que acontecia no país. Era uma visão um pouco mais romântica de tudo, de que é tudo muito bonito, muito belo. Vamos dizer que é uma visão bem turística, enquanto na realidade a música brasileira e bem mais caótica do que isso — caótica num sentido bom, de que é muita informação, muita coisa. É muito mais complexo do que as pessoas veem. Anitta acertou muito em mostrar que não é só uma coisa”, argumenta.
O clipe surge em um momento em que muito se critica a elitização da bossa nova, um movimento capitaneado por jovens brancos da Zona Sul carioca (embora João Gilberto fosse baiano), com pouco espaço para mulheres e apagamento de artistas negros que estiveram presentes desde o surgimento do gênero musical, como Johnny Alf (considerado por muitos um de seus precursores) e Alaíde Costa.
Se é urgente a necessidade de apontarmos injustiças e resgatarmos nomes que sofreram apagamento de sua participação no movimento — Alaíde Costa, por exemplo, irá realizar um álbum com direção artística de Marcus Preto e Emicida, que também fará grande parte das letras —, isso não significa diminuir a importância de nomes como Tom, Vinicius e João Gilberto. Para Joyce, só há uma definição possível para o “bruxo”: “Genial. Não tem outra palavra para o João. Genial mesmo. Uma coisa incrível mesmo”.
Redação com CNN