‘O Auto da Boa Mentira’ estreia nos cinemas com humor e absurdo de Ariano Suassuna

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“Na minha vida não acontece nada e eu gosto de contar histórias. Se eu não mentir, vou contar o quê?”

Ariano Suassuna (1927-2014), um dos escritores e dramaturgos mais celebrados do Brasil, era também fascinado pela mentira. Não as grandes e maldosas, mas as pequenas e cotidianas.

Nesta quinta (29), chega aos cinemas “O auto da boa mentira”, um filme em quatro atos que celebram as mentiras preferidas do escritor, baseado nos causos divertidíssimos que ele contava em suas entrevistas e palestras. Trechos do jeito gostoso que Suassuna conta essas histórias, seja para um auditório lotado ou para o Jô Soares, estão no filme.

Para Luís Miranda e Renato Góes, que aparecem em diferentes histórias do longa, esse tema cai como uma luva para o Brasil.

“Essa ideia da mentira é uma coisa que o Brasil precisa tomar muito contato e saber identificar porque temos um movimento muito negativo e terrível por conta dessas colocações de inverdades, e esse resultado tem sido catastrófico. Acho que o filme chega bem porque ele é uma comédia que propõe também esse desnudamento da mentira”, diz Miranda.

“Espero muito que o público entenda essa mensagem e comece, também, a se interessar pela verdade.”

Renato Góes, que volta ao humor depois de anos fazendo drama, celebra a atualidade do tema. “Não há momento melhor para a gente lidar com humor do que trazendo a realidade na cara das pessoas. Vê quem quer.”

Um novo ‘Auto da Compadecida’?

O longa, gravado em 2018 e pronto desde abril de 2020, estreia nos poucos cinemas abertos no país. A aposta da equipe está em dois elementos:

A ligação com “O Auto da Compadecida”, grande sucesso do cinema nacional baseado na obra de Suassuna. O título do filme, inclusive, se encarrega disso. O primeiro nome escolhido era “O riso de Ariano”, trocado em 2019;

E o elenco estrelado: Leandro Hassum, Cássia Kis, Renato Góes, Nanda Costa, Jesuíta Barbosa, Luís Miranda, Jackson Antunes, Rocco Pitanga, Sérgio Loroza, Johnny Massaro, Sílvio Guindane, Letrux e até o galã gringo Chris Mason.

O longa é dirigido por José Eduardo Belmonte (“Carcereiros: O Filme”, “Entre Idas e Vindas”) e tem roteiro de João Falcão (“O Auto da Compadecida”), Tatiana Maciel (“Filhos da pátria”) e Célio Porto (“Louco por elas”).

“O Ariano tinha muita fascinação por esse olhar inocente que, diante da diversidade, criava. É nesse sentido que ele falava da mentira. O perverso, que prejudica o outro e difama, ele não compactuava e não gostava. Mas quem inventava situações absurdas, que eram inocentes e sofriam as consequências por isso também, esses personagens interessavam muito a ele. Está muito na obra, né? ‘O Auto da Compadecida’ é exatamente isso. O Chicó é exatamente isso”, explica o diretor.

A busca por uma aproximação com a obra mais clássica de Suassuna é mais uma questão de marketing do que de conteúdo.

“Até pelo nome, é óbvio querer aproximação, mas ao mesmo tempo, são histórias tão urbanas, é outro tipo de humor, menos férrico, é um humor em outra velocidade. Eu acho que a comparação é inevitável até porque a obra do Ariano tem muita personalidade, mas é uma nova leitura”, diz Belmonte.

Para compor o elenco, ele pensou em uma “seleção brasileira de estrelas” e ligou para todos os atores com quem sempre quis trabalhar. “Eram só cinco dias de gravação, foi fácil conciliar a agenda”, conta.

O único reforço gringo nesta seleção nacional é Chris Mason, de “Riverdale”. Para dar conta, ele teve que aprender a falar português em pouquíssimo tempo, com a filha do diretor. “O Chris tinha feito uma série com o Bruno Barreto no Mato Grosso. E minha assistente de direção tinha trabalhado com ele. Eu falei ‘olha, de repente a gente chama o Chris pra vir pro Rio e dá um jeito de ele ficar mais tempo depois, acho que ele vai curtir”, conta Belmonte.

Relatos selvagens e absurdos

Na tela, vemos quatro histórias muito diferentes, interligadas apenas pelo rastro podre da mentira. Na primeira, o personagem de Leandro Hassum é apenas um gerente de RH, mas, em meio à confusão de um seminário, é confundido com um comediante famoso. Ele se aproveita da mentirinha safada, mas inocente até conhecer a “femme fatale” interpretada por Nanda Costa.

Em meia hora, tudo é resolvido e somos apresentados à família formada pelos personagens de Renato Góes e Cássia Kis. A mãe esconde um segredo do filho. Sua mentirinha leva o filho a ser enredado por mentiras e apuros maiores. A dupla está afiadíssima junta e garante bons momentos de humor esperto.

Góes diz que aproveitou a oportunidade para fazer as pazes com o humor. “Eu pensava ‘Meu Deus, não tenho mais o que fazer, só faço comédia’. Até na Globo, as primeiras novela que eu fiz eram só com personagens de comédia. E realmente eles não tiveram tanto destaque, as pessoas nem lembram que eu era o ator. Mas foi ótimo retomar esse encontro e chegar como uma coisa fresca.”

No terceiro, um inglês vivido por Mason inventa que foi assaltado depois de faltar ao aniversário do personagem de Sérjão Loroza e acaba criando uma confusão com chefes do tráfico.

E, por fim, personagens de vários figurões de novela e cinema do Brasil, Luis Miranda, Johnny Massaro, Silvio Guindane, Letícia Isnard, são os cínicos funcionários de uma agência de publicidade que se deslumbram com a Disney, prêmios, águas saborizadas e outras ostentações. E as pequenas e grandes mentiras de todos estão na mira da estagiária desastrada na festa de fim de ano da firma.

Os pequenos contos são mais absurdos do que engraçados, com consequências muito maiores do que as pequeninas contadas por Ariano nas tais palestras. As pequenas lições características dos autos também estão lá, mas não tornam o filme um grande uma história chata de moral.

A construção do longa lembra a de “Relatos selvagens”, e o casamento final do filme argentino, com sangue, briga e quase morte, tem seu correspondente na festinha de confraternização de “O auto da boa mentira”.

Para Miranda, a semelhança com o filme argentino também é um ponto positivo. “A gente se surpreendeu no cinema com ‘Relatos selvagens’ porque achávamos que histórias picadas não interessavam, mas é muito perspicaz. Ainda mais quando for pro streaming, dá pra ver uma história por dia. A fragmentação é um caminho bem interessante para o cinema.”

As mentiras do elenco

Em coletiva de imprensa, quatro dos atores, chegados nas boas mentiras, contaram as que mais os marcaram:

Luís Miranda: “A boa mentira, a gente nem tem a maior, a gente vai trabalhando dissimuladamente. Pra mim, é ‘já trabalhei com fulano’, para aumentar o currículo. Às vezes, você não trabalhou, só pisou no fundo do filme.”

Renato Góes: “Abriu uma boate em Recife, eu tinha uns 15 anos. Meus amigos se reuniram para jogar bola e todo mundo comentando da boate. ‘E aí ‘Renato, tu foi?’, e eu disse ‘fui sim, fiquei ali na partezinha externa’. Não tinha essa parte, no outro dia eu fiquei com a fama de mentiroso entre os amigos.”

Jackson Antunes: “Sempre que eu chego na minha terra, chega alguém me pedindo dinheiro emprestado. A pessoa fala assim pra mim ‘Ô, Jackson, eu preciso comprar uma fazenda que custa R$ 5 milhões, você pode me ajudar?’. E eu falo: ‘Nesse mês não vou poder porque acabei de comprar uma fazenda de R$ 10 milhões’. E também sempre aumento as histórias da televisão e do cinema pra ficar mais interessante, né?”

Leandro Hassum: “Eu sou muito mentiroso. Sempre falo para as pessoas que estou passando mal quando não quero ir às festas. Quando recebemos roteiro merda, a gente também diz: ‘Eu adorei, mas tô sem tempo’.”

Por Thaís Matos, G1

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