Rei Pelé: novo documentário da Netflix
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Pelé chega a um amplo salão, vazio, onde no centro está posicionada uma única cadeira de madeira.
Ele se dirige a ela, senta-se e, uma vez acomodado, despreza o andador que o ajudou a caminhar até ali.
Coloca o aparato de lado com um movimento brusco, como se não gostasse de ser visto com ele.
É uma das primeiras imagens de um documentário que, apesar de celebratório, expõe o Rei do Futebol a alguns temas e questões que ele não se acostumou a enfrentar.
As dificuldades de locomoção recentes, por exemplo, escancaradas no andador e na cadeira de rodas.
E a política, que o acompanhou praticamente por toda a vida, ainda que ele nunca tenha gostado de falar a respeito.
“Pelé”, com pouco menos de duas horas de duração, estreia na plataforma de streaming Netflix na próxima terça-feira (23).
A produção, realizada pelo braço audiovisual da agência Pitch International e dirigida por David Tryhorn, resgata o auge da carreira do jogador entre as Copas do Mundo de 1958 e 1970, período que compreende os três primeiros títulos mundiais da seleção brasileira, todos com a presença do Atleta do Século.
O documentário é um registro relevante principalmente para as gerações mais novas, que talvez não tenham assistido ao filme Pelé Eterno (2004), mas hoje, com acesso à Netflix, poderão ver grandes imagens do Rei em campo, todas elas muito bem tratadas -a Copa do Mundo de 1966, inclusive, é exibida a cores.
Diversos ex-companheiros, personalidades do futebol e figuras ilustres de outras áreas concedem depoimento à produção. Entre os jornalistas, Roberto Muylaert, José Trajano, Paulo César Vasconcellos e Juca Kfouri falam sobre a trajetória do Rei.
O cantor e compositor Gilberto Gil e a deputada federal Benedita da Silva (PT) retratam o ídolo do futebol como um emblema do Brasil negro.
“Ele se transforma no símbolo da emancipação do brasileiro”, diz Gil, sobre o significado do craque (para além do gramado) nas conquistas da seleção a partir do Mundial de 1958.
Mas Paulo Cezar Caju, campeão do mundo ao lado de Pelé em 1970, vai na contramão dos elogios ao simbolismo e pontua que sempre criticou o companheiro por sua falta de posição sobre temas políticos e sociais, como o racismo.
Diretor e produtores tentam tirar de Pelé as impressões pessoais de um personagem que esteve sempre cercado pela política e seus atores.
Aparece no documentário o aperto de mão com o general Emílio Garrastazu Médici, presidente do Brasil à época do tricampeonato mundial, quando o país viveu seu período de maior repressão durante a ditadura.
“Com a ditadura, mudou alguma coisa para você?”, pergunta o diretor, David Tryhorn.
“Não, o futebol continuou o mesmo. Para mim, pelo menos, não mudou nada”, responde
Pelé que, mais adiante, é perguntado sobre o conhecimento que tinha dos abusos cometidos pelo governo nos anos de chumbo.
“Se eu dissesse que não sabia, estaria mentindo. Mas era difícil saber o que era verdade e o que era mentira.”
No processo de pesquisa e entrevistas, Tryhorn admite que sabia da dificuldade de arrancar do Rei do Futebol, entrevistado e biografado inúmeras vezes, algo que ele nunca tenha dito na vida.
“Era importante que a gente continuasse insistindo. Ele deveria ter feito algo mais. Poderia ele ter feito mais alguma coisa [na ditadura]?”, questiona o diretor.
David Tryhorn considera como um dos trunfos de seu documentário as cenas em que Pelé frequenta um churrasco com seus ex-companheiros de Santos.
Simplesmente por se tratar de um momento em que ele não é visto como embaixador ou garoto-propaganda de nada.
De camiseta, Pelé chega ao local de cadeira de rodas. Ao contrário da insatisfação que mostra com o andador no início, esbanja bom-humor com os seus amigos de outrora.
Edu, que atuou ao lado do camisa 10 no clube da Vila Belmiro, brinca: “Vai dar um cavalo de pau”, tirando um sorriso de todos, inclusive de Pelé.
Entre uma entrevista e outra, além das imagens de episódios da história do Brasil que se entrelaçam com sua carreira, um vasto material de arquivo leva ao telespectador alguns dos gols mais fantásticos do Rei, até mesmo os marcados em amistosos.
Registros que se tornaram motivo de discussão recente em razão dos números alcançados por Lionel Messi e Cristiano Ronaldo nos ditos jogos oficiais.
O documentário não quer deixar margem para dúvidas. Em uma inscrição que surge na tela, aparece o total de gols marcados por ele: 1.283.
Mas não é possível ouvir Pelé sobre o tema. O documentário não aborda essa questão, e não houve a oportunidade de perguntar diretamente a ele.
Como forma de promover o material, a Netflix convidou jornalistas para uma entrevista com o Rei, mas ele não se sentiu bem na data acordada, segundo sua assessoria.
O compromisso foi adiado para o dia seguinte, quando houve novo cancelamento do atendimento à mídia.
Já haviam sido previamente vetadas, pela equipe que gerencia a imagem de Pelé, perguntas sobre a polêmica dos jogos oficiais e também a respeito da morte de Diego Armando Maradona, em novembro do ano passado.
Assuntos abordados apenas nas redes sociais do ex-jogador, mas não em entrevistas.
BRUNO RODRIGUES FOLHAPRESS