O Facebook completou uma década. Faz 10 anos que o tempo ficou mais curto. Dez anos que amizades se fortaleceram ou foram estragadas para sempre. Dez anos que os comentários infelizes perderam seu lugar na vala comum do esquecimento.
O destino de todo e qualquer deslize é a eternidade numa plataforma mais duradoura que a Pedra de Roseta. Mesmo que o infeliz apague o disse, mesmo que se retrate, o estrago está feito. OK, o Facebook não trouxe só problemas. Se tanta gente não sentisse prazer em usá-la, a rede social não seria o sucesso que é.
O resultado é piegas, como muitas de nossas postagens. O filminho é brega como a vida. Espiei o meu e, confesso, fiquei tocada ao rever momentos importantes para mim.
Não tive coragem de compartilhar meu vídeo. Ninguém merece ver uma história que só interessa a quem a viveu. Seria impingir aos meus amigos o desconforto que sentia quando era obrigada a frequentar festinhas em buffets infantis.
Você está ali, num barulho infernal, tentando desgrudar do dente uma daquelas terríveis bolinhas de queijo — parentes distantes e desvirtuadas da coxinha de galinha. Ainda é obrigada a dar atenção ao pai do coleguinha da sua filha que se sentou ao seu lado.
O mala insiste em falar das vantagens de seu Grand Cherokee numa cidade abarrotada de carros. Enquanto pensa que “quanto maior o carro, pior a pessoa”, começa o tormento master. Um filme longo, mal feito, com uma musiquinha melosa apresenta os grandes momentos da vida do aniversariante. Thanks, God. Os filhos crescem.
É impressionante a tendência do ser humano de olhar o passado com excessiva generosidade. O Facebook deita e rola. Está sempre pronto a fornecer ferramentas que reforçam essa característica tão humana. Fotos postadas por colegas da juventude na sua linha do tempo (quase sempre sem a sua autorização prévia) estimulam o saudosismo.
Muita gente sofre com pensamentos do tipo: “Ah, como eu era magro”; “Nossa, como eu era cabeludo”; “Ah, por que deixei escapar o amor da minha vida?”; “Como éramos felizes naquele emprego”.
A memória é uma eterna traidora. Aquelas cenas que juramos relembrar vividamente não passam de edição. Não são editadas apenas pelo Facebook. São editadas o tempo todo, naturalmente, pelo nosso cérebro.
Um exemplo dessa edição foi demonstrada por pesquisadores da Universidade Northwestern, em Chicago, num estudo publicado nesta semana no Journal of Neuroscience.
O cérebro edita o passado. Bem melhor que o Facebook. O trabalho desses cientistas é o primeiro capaz de demonstrar como a memória pega fragmentos do presente e os adiciona nas lembranças do passado.
“A noção de que a memória é perfeita é um mito”, diz o professor de neurologia Joel Voss, orientador do estudo. “Todo mundo gosta de pensar nela como essa coisa que nos faz recordar vividamente de nossa infância ou do que fizemos na semana passada”, diz Voss.
Não é bem assim. A memória não recupera cenas do passado com a acurácia de uma câmera de vídeo. Ela atualiza as lembranças com novas experiências. Voss explica que uma região do cérebro chamada de hipocampo atua como um editor de filme ou diretor de efeitos especiais.
Esse mecanismo existe para nos ajudar a sobreviver e a nos adaptar a ambientes que mudam constantemente. Ele também nos ajuda a focar nas coisas que realmente são importantes no presente.
“A memória é planejada para nos ajudar a tomar boas decisões a cada momento. Por isso, ela precisa estar sempre atualizada. A informação que é relevante agora pode substituir a do passado”, diz Voss.
No estudo, o objetivo dos pesquisadores era identificar o exato momento em que uma informação incorreta é implantada numa lembrança. No experimento, eles pediram a 17 homens e mulheres que estudassem a localização de 168 objetos numa tela de computador com fundos diferentes (uma cena do fundo do mar, a vista aérea de uma fazenda etc).
Em seguida, os participantes foram convidados a colocar o objeto no lugar original, mas numa tela com um fundo diferente.
Depois, o mesmo objeto foi apresentado aos voluntários em três lugares na tela original. Aí eles foram convidados a escolher a localização correta entre três opções: o local onde eles viram o objeto originalmente; o lugar que eles escolheram colocar o objeto na etapa anterior e uma localização completamente nova.
Os participantes sempre colocaram o objeto no local que eles escolheram durante a segunda parte do teste. “Isso sugere que a lembrança original mudou para refletir a localização da qual eles se lembraram na tela com o fundo novo, diz a pesquisadora Donna Jo Bridge.
“A memória deles atualizou a informação incluindo a nova informação na lembrança antiga”, diz Donna. “Nossa memória remonta e edita acontecimentos para criar uma história que faça sentido no mundo atual. A memória é construída para ser atual”.
Durante o teste, a atividade cerebral dos voluntários foi monitorada por meio de equipamentos de ressonância magnética. É claro que o estudo tem limitações. É um trabalho de laboratório, mas não é absurdo pensar que a memória funciona da mesma forma no mundo real.
Os pesquisadores acreditam que o trabalho pode até mesmo levantar questões sobre a confiabilidade dos depoimentos de testemunhas em processos judiciais. “Nossa memória é construída para mudar, não para regurgitar fatos. Não somos testemunhas muito confiáveis”, diz Donna.
O estudo também pode nos levar a repensar a importância de momentos marcantes na nossa vida. O amor à primeira vista, por exemplo, parece ser mais um truque da memória.
“Quando você pensa no momento em que encontrou seu parceiro atual, provavelmente você relembra o sentimento de amor e euforia”, diz Donna.
Segundo ela, isso ocorre porque projetamos o sentimento atual sobre a lembrança do encontro original com a pessoa amada.
O cérebro deixa para trás o que é descartável. Reinterpreta o que precisa ser reinterpretado para que a gente possa seguir em frente. Livra-se com facilidade do excesso de bagagem. Se o passado foi bem vivido, ótimo. Se não foi, bola para frente. Não permita que ele estrague o presente. Até porque a leitura que fazemos do passado pode não ser muito fidedigna.
Ao contrário do nosso cérebro, o Facebook eterniza toda e qualquer trolha. Traz de volta o que não interessa mais. A vida muda, seu cérebro se adapta. Recupera e edita só o que interessa. Bem que o Facebook poderia deixar o passado descansar em paz.
Globo.com