Na Argentina, milhares de demissões acendem debate sobre funcionalismo
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Quase 20 dias depois de Mauricio Macri assumir a Presidência da Argentina, em dezembro, seu governo publicou um decreto em que pediu a “revisão” dos contratos e dos processos de concurso e seleção de funcionários públicos da administração nacional. A medida gerou protestos de milhares de funcionários e suscitou um debate sobre o suposto inchaço e a eficiência da máquina pública argentina.
Desde a publicação do polêmico decreto, mais de 18,6 mil funcionários públicos foram demitidos ou receberam anúncio de demissão ou de não renovação do contrato. Eles atuavam tanto na administração nacional, como ministérios, e no Senado, como nos municípios e províncias, segundo um relatório do Observatório do Direito Social (ODS), que é ligado à Central de Trabalhadores da Argentina e se opõe aos cortes.
O número do ODS corresponde a 0,47% do total de funcionários, e o levantamento ainda indica que seriam pelo menos 5 mil demitidos na esfera federal, incluindo o legislativo. O governo, no entanto, não divulga o número oficial de demissões.
O país tem 3,9 milhões de funcionários em todas as esferas da administração pública, além de universidades, estatais e outros organismos. A estimativa é do Centro de Implementação de Políticas Públicas para a Igualdade e Crescimento (Cippec), que analisa as políticas com base no anuário de estatísticas do governo de 2014.
Questionado sobre as demissões em massa, Macri afirmou em sua primeira coletiva de imprensa deste ano que, nos governos de Néstor e Cristina Kirchner, a administração pública foi colocada “ao serviço da militância política”. O novo presidente citou ainda o problema de funcionários fantasmas, que na Argentina são chamados de “nhoques” – não exercem seu cargo, mas comparecem no dia em que os salários são pagos, todo dia 29, quando tradicionalmente é servido o típico prato italiano.
“O que vimos nesses dias foi um enorme esvaziamento do Estado. Um Estado presente e inteligente é um Estado que se baseia na carreira pública, em que cada empregado entrou por concurso, tem capacidade, segue se formando, segue melhorando, para que cada vez possa oferecer uma melhor resposta à cidadania. Isso é o contrário do que encontramos aqui, um Estado colocado ao serviço da militância política”, afirmou o presidente.
“Quero que cada argentino esteja orgulhoso de seu trabalho. Que não haja mais argentinos que assinam um recibo salarial por um trabalho que não realizam. Este país pode dar oportunidade de trabalho a todos para que possamos crescer. E que cada um dos argentinos que hoje encontramos escondido ou que não vem e que ganha salário tem que entender que ele vai ter um lugar e que precisamos dele”, disse.
Um estudo feito pela consultoria KPMG indica que os funcionários “nhoques” seriam entre 5% e 7% dos trabalhadores públicos do país.
Críticas ao governo
Para o coordenador do Observatório do Direito Social, no entanto, as demissões em massa são feitas de maneira indiscriminada. “A nova gestão busca instalar a ideia de que uma grande quantidade desses trabalhadores pertencia a forças políticas ou não realizavam nenhuma tarefa. Essas afirmações são injustificadas”, diz Luis Campos ao G1.
Ele diz que ninguém pode ser discriminado por ideologia ou atividades políticas e afirma que, entre os demitidos, havia gente que trabalhava corretamente. “Trata-se de um mecanismo de demissões generalizadas, que não têm a ver com uma suposta violação do trabalhador em questão”, diz o coordenador do ODS.
BRASIL X ARGENTINA | |||
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País | Habitantes | Servidores públicos | % de servidores no total de empregados |
Brasil | 200 milhões | 11,5 milhões | 12% |
Argentina | 41 milhões | 3,9 milhões | 18% |
Inchaço da máquina pública
Segundo um levantamento do jornal “La Nación” a partir de dados do Ministério de Economia, entre 2003, quando Néstor Kirchner assumiu o poder, e 2015, último ano de mandato de Cristina, foram contratados 163 mil funcionários somente na presidência, nos ministérios e em empresas e órgãos estatais vinculados ao governo central – portanto, sem incluir os contratados pelo Legislativo ou por governos provinciais e municipais. O crescimento representa 63%.
E o aumento no emprego público na Argentina não se deu da mesma maneira em todos os níveis da administração, segundo explica ao G1 Gonzalo Dieguez, diretor do programa de gestão pública do Cippec.
“O grosso do emprego público se encontra nos governos subnacionais e municipais. A principal explicação para o crescimento não está no governo nacional, mas sim nas províncias”, afirma.
Segundo Dieguez, o papel do Estado cresceu nos últimos 12 anos, e as províncias executam muitas das políticas públicas associadas a educação, saúde e segurança.
Em comparação a outros países da América Latina, o peso do emprego público na Argentina supera os dos países vizinhos e perde apenas para a Venezuela, de acordo com outro estudo do Cippec.
Irregularidades
Grande parte dos funcionários públicos na Argentina são selecionados por meio de concursos e têm direito a estabilidade. Mas há também aqueles que têm contratos de prestação de serviço por tempo determinado. Segundo o Cippec, cerca de 30% dos servidores argentinos têm esse tipo de contrato.
“Os níveis de precarização contratual no setor público são alarmantes”, diz Luis Campos, do ODS. “Contratos temporários que se renovam por anos, tarefas próprias do setor público que são terceirizadas através de falsas cooperativas de trabalho, locações de serviço para encobrir relações laborais, uso de universidades nacionais como agências virtuais de colocação de trabalhadores. São algumas das práticas que dão conta de situações irregulares”, afirma.
Outras questões importantes, segundo Campos, são a existência de salários muito baixos, que em alguns casos são menores do que o mínimo, e a falta de negociações coletivas das condições de trabalho.
“Isso é um cenário de relativa informalidade laboral dentro do próprio Estado. E é um paradoxo, porque o Estado tem contratados que não têm estabilidade laboral, o que a Constituição argentina prevê muito claramente”, diz Gonzalo, do Cippec. Segundo ele, o aumento dos funcionários com condições de informalidade cresceu 224% entre 2003 e 2015.
Para o especialista, portanto, discutir apenas se há muitos ou poucos funcionários públicos na Argentina não resolve a questão. “A discussão não passa por quanto há de emprego público, mas com qual qualidade”, afirma. “O foco de atenção tem que ser em dois planos: primeiro, como se selecionam os empregados públicos. E, segundo, como se avalia o trabalho e o desempenho deles”, diz.
Redação com G1