SUS deixa de tratar no prazo legal 40% das pessoas com câncer

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susO nódulo no seio direito apareceu em um exame de rotina em janeiro. Desconfiada, Adriana (nome fictício) resolveu pagar do próprio bolso a biópsia pedida pelo médico, para acelerar seu diagnóstico.

O resultado a levou para um hospital público especializado. Estava com câncer de mama. O tumor poderia ser retirado em cirurgia, ouviu.

Cinco meses depois do diagnóstico, ela não sabe quando fará esse procedimento e descobriu um novo nódulo, embaixo do braço. “Apareceu também no seio esquerdo. Está crescendo rápido.”

Apesar de existir uma lei que prevê que todos os casos de câncer tenham direito a tratamento em até 60 dias depois do diagnóstico, quatro em cada dez casos registrados em um sistema do governo federal esperam mais tempo para receber atendimento.

Dados do Ministério da Saúde mostram que, dos 27.248 casos com data de tratamento registrada no Siscan (Sistema Nacional de Câncer), só 57% tiveram atendimento em até 60 dias. Outros 43% iniciaram tratamento depois desse prazo –a maioria após 90 dias ou mais.

A espera desses pacientes mostra que, três anos após entrar em vigor, a lei 12.732, sancionada em 2012 e chamada de “lei dos 60 dias”, ainda não é cumprida no país.

Para oncologistas, a demora pode agravar a situação do paciente. O impacto depende do estágio e de cada tipo de câncer. Em caso de linfomas mais agressivos, a espera pode ser fatal, diz Rafael Kaliks, oncologista clínico do Hospital Israelita Albert Einstein.

“Sessenta dias já não é o ideal, porque existem vários tipos de câncer. E também do ponto de vista psicológico. Imagina esperar dois meses para começar a tratar”.

Ele lembra que, no Reino Unido, o limite é de 30 dias a partir do diagnóstico.

Gustavo Fernandes, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, diz que a ideia de ter um limite é importante, mas faz ressalvas. “Há pacientes que podem esperar até 90 dias. Outros, nem 15. Não pode ser uma regra única.”

GARGALOS

Antes de tratar, pacientes enfrentam outro gargalo: a espera por diagnóstico. “A doença não passa a existir só quando a pessoa tem o papel na mão”, diz Fernandes.

“Temos pacientes esperando há mais de dois anos por exames. Isso não é contabilizado”, diz o advogado Alber Sena, da Abrale (associação de linfoma e leucemia).

É o que ocorre com o auxiliar-administrativo Camilo Oliveira, 25, que mora em São Paulo. Em agosto de 2015, descobriu um nódulo na região cervical. Atendido por um clínico-geral, foi encaminhado para exames e especialistas. Em meio à dificuldade para agendar o serviço e novas consultas, ele ainda não tem uma resposta.

Para Rafael Kaliks, ao mesmo tempo em que a lei foi benéfica ao alertar para a necessidade de tratamento rápido, faltou planejamento para que o prazo pudesse, de fato, ser cumprido pelas instituições.

Segundo ele, a situação faz com que muitos hospitais optem por atender um número limitado de pacientes para continuar dentro do prazo.

“Se fecham a porta de entrada, não começa a contar o relógio de 60 dias”, afirma.

Para Luciana Holtz, presidente do Instituto Oncoguia, que representa pacientes, a lei foi um “grito de socorro”. “O problema é que não veio com mais recursos. Tivemos a lei, mas não se parou para corrigir as barreiras.”

  PA  
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Exame de imagem de seio, que pode detectar câncer; lei prevê começo de tratamento em até 60 dias

PACIENTES ‘INVISÍVEIS’

Ao mesmo tempo em que parte dos dados do Ministério da Saúde aponta um período longo de espera até o atendimento, há casos de pacientes com câncer que ainda permanecem sem resposta ou estão “invisíveis” nas estatísticas.

Dados obtidos pela Folha a partir dos registros do Siscan (Sistema Nacional de Câncer) apontam que, além dos 27.248 casos de câncer com data de início de atendimento registrada no sistema, há outros 31.046 cadastrados, mas sem essas informações.

A ausência desses dados faz com que não seja possível saber, com isso, quantos destes casos, embora tenham sido diagnosticados, ainda esperam para o tratamento.

Ou, ainda, se há entre eles casos já em acompanhamento –mas cuja data de início da quimioterapia, radioterapia ou cirurgia deixou de ser informada pelos hospitais.

Há ainda outro impasse que permeia os registros. Estimativa do Inca (Instituto Nacional de Câncer) aponta que, apenas neste ano, o Brasil terá 596 mil novos casos de câncer. Ou seja: cerca de dez vezes o registrado no Siscan –58 mil, quando somados aqueles com data de início de tratamento e os demais sem informações.

“Há muito menos pacientes do que deveria ser registrado”, afirma Gustavo Fernandes, da SBOC.
Sem os dados, não há como ter um panorama completo dos registros de câncer no país, segundo especialistas e associações de pacientes.

Segundo Ana Lúcia Gomes, coordenadora de relações institucionais da Femama (Federação de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama), a falta de informações dificulta o controle dos atendimentos.

“A criação da lei é benéfica. Mas até hoje não conseguimos saber se foi de fato implementada”, diz. “Só pelas informações falhas, já sabemos que ela não funciona.”

Ela cita uma pesquisa feita pela Femama em 2014 com 54 secretarias de saúde, órgãos reguladores e centros de assistência. Metade já tinha enfrentado falhas no funcionamento do sistema.

Entre os impasses alegados à época estavam a ausência de treinamento de profissionais e falta de acesso à internet nas unidades de saúde do interior do país, o que inviabilizava os registros.

Nos bastidores, técnicos do Ministério da Saúde admitem que ainda há dificuldades.

A avaliação é que, embora o número de municípios com acesso ao sistema tenha crescido (atualmente são 4.867), ainda há impasses para ele ser implementado em todos os serviços vinculados a este tipo de atendimento na rede de saúde.

OUTRO LADO

O Ministério da Saúde afirma reconhecer a importância da lei dos 60 dias e diz que tem ampliado os serviços de diagnóstico e tratamento junto aos gestores de Estados e municípios para “dar maior agilidade ao atendimento”.

O ministério diz ainda que o Siscan está em fase final de implementação e que os ajustes e aprimoramentos em curso no sistema “não prejudicam o ritmo de atendimento e tratamento de câncer no SUS”.

“Prova disso é que, em cinco anos, houve um aumento de 34% no número de pessoas com câncer atendidas no SUS, ampliado de 292,9 mil em 2010 para 393 mil em 2015”, afirma a pasta.

Segundo o ministério, nesse período, o número de procedimentos de tratamento (radioterapia, quimioterapia e cirurgia oncológica) e de prevenção cresceu 9%.

“O Ministério da Saúde reconhece que, ainda que muitos avanços já tenham sido atingidos, há ainda muito mais a avançar tendo em vista os desafios impostos a um país com dimensões continentais, como é o caso do Brasil”, afirma a nota.

A pasta acrescenta ser prioridade “o aprimoramento da gestão para a maior eficiência e qualidade do serviço”.

Ainda segundo o ministério, os recursos para tratamentos oncológicos cresceram 68% entre 2010 e 2015 –de cerca de R$ 2,1 bilhões para R$ 3,5 bilhões.

UOL