A Casa da Memória Vicente Ferreira de Macedo- Exemplo de preservação do patrimônio arquitetônico da Paraíba

Por Por Alisson Pinheiro - em 10 segundos atrás 1

Louvo a casa de morada / Porta, batente e portal / Cupiá, tijolo alpendre, / Terreiro, sala e quintal, / Camarinha, telha e ripa, / Cozinha, caibro e beiral.

[quadrinha popular, citada por     Juvenal Lamartine de Faria]

Nos primórdios, as casas rurais do Seridó antigo paraibano eram feitas de materiais simples, como barro e madeira, frágeis, mas perfeitamente adaptados ao clima. A localização da vivenda seguia alguns critérios: proximidade de fontes de água potável, boa visibilidade e algum tipo de acesso, mesmo que precário. A construção era orientada para o nascente, protegendo-a do sol causticante da tarde. Isolada dentro do terreno, a moradia permitia aberturas em todas as fachadas e coberturas em quatro águas, favorecendo ventilação e conforto. Todos esses requisitos são atendidos pela fértil ribeira do Várzea Verde.

Com o aumento da população ao longo do século XVIII e o surgimento de gerações nascidas e criadas aqui, a posse da terra tornou-se mais acessível. O algodão trouxe riqueza a um ambiente acostumado à rusticidade, e, nesse contexto, começaram a surgir residências maiores, construídas em pedra ou tijolo. As moradias precárias do início foram então substituídas pelas casas grandes que ainda podem ser avistadas em vários pontos do Seridó. Algumas resistem até hoje, ainda que em estado deplorável. Essas casas são notavelmente semelhantes entre si, com poucas variações internas, mas constituem exemplares arquitetônicos únicos, inexistentes em outras regiões.

É penoso observar o fim lento dessas casas antigas, os lares dos nossos ancestrais, arruinadas pela falta de cuidado. A migração campo–cidade, intensa a partir da metade do século XX, contribuiu significativamente para esse processo, resultando no abandono de inúmeros imóveis icônicos, entregues à força destrutiva do tempo. Mesmo quando tombados por leis estaduais, não recebem restauro. Diante da degradação causada pelos eventos naturais ao longo das décadas, a restauração torna-se difícil e dispendiosa.

No entanto, no Seridó Oriental Paraibano, houve uma feliz exceção a essa regra de destruição do patrimônio. Trata-se da antiga residência senhorial localizada no sítio Várzea Verde, em Frei Martinho, renovada pela herdeira Maria de Fátima Macedo e rebatizada como Casa da Memória Vicente Ferreira de Macedo, em homenagem ao seu pai, uns dos pioneiros da mineração em Picuí. Desde o início, seu renascimento foi pensado para ser um centro de irradiação cultural.

A Casa da Memória é um belíssimo exemplar das antigas habitações rurais seridoenses da Paraíba, singulares em forma e estilo. Seu núcleo original abrangia o alpendre, a sala de visitas, a sala do oratório, três quartos, despensas, sala de jantar e cozinha. Permaneceu desocupada por vinte anos, período em que várias partes do teto ruíram e o sótão foi tão comprometido que não pôde ser reaproveitado. O piso estava em grande parte imprestável, e do curral de gado restavam apenas vestígios no terreno.

Felizmente, a restauração contou com excelentes artífices locais, herdeiros de uma antiga tradição. Embora o sótão e a cozinha não tenham podido ser reconstruídos, o oratório estava quase intacto, como se protegido pelos santos. Foi necessário rebaixar o pé-direito da casa para adequá-lo às telhas modernas, mas toda a madeira do teto foi substituída, exceto os brabos de sustentação, feitos de madeira nobre retirada dos bosques vizinhos. Apesar das modificações, houve cuidado em preservar a originalidade. Portas e janelas foram reparadas por um hábil marceneiro, e as caixilharias, todas originais, puderam ser reaproveitadas. O piso do alpendre estava surpreendentemente conservado, mas a fachada precisou ser adaptada às normas  modernas de acessibilidade. As caixilharias, de fato, são preciosas. As portas externas, lindamente ovaladas, são obra de um artista cujo nome o tempo apagou. Os batentes, de pedra, guardam a rusticidade típica dos nossos ancestrais.

A trajetória da Casa da Memória Vicente Ferreira de Macedo configura-se como um farol de resistência contra a indiferença e a ação destrutiva do tempo, que tem consumido o rico patrimônio arquitetônico do Seridó Oriental Paraibano. Em meio ao abandono dos casarões que abrigaram nossos antepassados e testemunharam a passagem de gerações, essa edificação notável emerge como uma incrível exceção. Sua restauração meticulosa, fiel ao estilo rural seridoense, transformou uma edificação arruinada em um vibrante centro cultural.

O filósofo Jean-Jacques Rousseau narra, em suas ‘Confissões’, que o acesso à casa de um amigo com uma biblioteca foi um marco indelével em sua formação intelectual. Naquela casa, em meio a volumes desordenados e lidos sem método, germinou seu ardente amor pela leitura e pelo saber, um despertar que o conduziu a sua vocação e à plena compreensão de si e do mundo. De modo análogo, cada peça artística acolhida na Casa da Memória oferece um portal para a redescoberta de vocações, um reencontro com nossa história e uma introdução sensível à arte para as crianças que visitam seus oito espaços e se divertem em meio à magnífica paisagem campestre da Várzea Verde.

A restauração da Casa da Memória não apenas salvou um precioso exemplar arquitetônico. Ela carrega um propósito nobre: ser um espaço cultural inspirador, farol da memória e guardião da civilização que floresceu no coração do Seridó da Paraíba.

Por Alisson Pinheiro

    Sem tags.