Clodomiro Albuquerque, o Memorialista

Por Alisson Pinheiro - em 2 minutos atrás 1

A arte é o espelho e a crónica da sua época.

William Shakespeare

Por bastante tempo, Picuí era Pedra Lavrada e Pedra Lavrada era Picuí, devido a fatores geográficos, administrativos e familiares. Nesse contexto, apareceu Clodomiro Albuquerque que viveu no então Distrito de Pedra Lavrada entre os anos de 1912 e 1926, no momento em que as grandes transformações trazidas pelo automóvel, a eletricidade e o cinema modificavam um estilo de vida que se mantinha quase inalterado ao longo de dois séculos. Décadas mais tarde, ele descreveu este cenário da cena lavradense, humana e social, no livro “Pedra Lavrada e Seus Caminhos.

Ele nasceu em 1912 na casa grande do sítio Cantagalo, pertinho do letreiro na pedra que deu o nome à localidade. Sua mãe, Maria Carrilho,  a dona Santa, era de Catolé do Rocha e se mudou para o Seridó depois que enviuvou. Atendeu ao chamado de sua Tia Doninha, matriarca catoleense que se radicou em Pedra Lavrada. Veio a se casar com Pascoal Barboza, com raízes em Cubatí, e formou uma grande família.

O livro começa com a apresentação dos pontos principais da vila, nomeia seus habitantes e o papel desempenhado por cada um no início do século XX. Os contemporâneos que ele apresentou foram fundadores de extensas famílias e pessoas de destaque em Picuí, a exemplo de João Cordeiro e Eugênio Vasconcelos que viriam ser eleitos prefeitos da “terrinha”.  Ainda trouxe uma visão sobre a origem dos nossos antepassados ao esmiuçar a árvore genealógica da sua família ao longo de três gerações.

Apresentou narrativas preciosas, como a viagem feita em lombo de burro para Campina Grande e a chegada do primeiro automóvel em Pedra Lavrada, que gerou contentamento misturado com medo e pânico. Os seus relatos sobre facadas e tiros, demonstram que o Seridó era um local em que a violência persistia (os anos anteriores tinham sido marcados pelas andanças de Antônio Silvino pelas redondezas).

Descreveu comportamentos singulares, como a do preto Estêvão que lambuzava seu corpo com o suor das axilas para enfrentar (com êxito) abelhas zangadas. Ele contou que picadas de cobra e outras doenças graves eram enfrentadas com rezas e talismãs, os mesmos métodos da época do Brasil Colônia, indício do imobilismo secular da vida sertaneja.

Traçou um perfil do padre arreiense Simão Fileto, personagem influente e controversa de quem se fala até hoje, que nomeia ruas e escolas em cidades de dois Estados brasileiros, cujas ações foram decisivas para a evolução urbana de Cubati. Ele destaca a importância da filarmônica local, um lugar de igualdade racial e social, bastante similar a sua congênere picuiense. Muito cedo começou a integrar a banda, tornando-se um talentoso multi-instrumentalista capaz de exercer a liderança musical nos conjuntos em que tocou.

Suas histórias demonstram que o Carnaval era uma festa tão popular quanto no presente e que já existiam pessoas com ideias socialistas, reflexo da globalização que se acelerou com a chegada da estrada de ferro em Campina Grande anos antes. Noticia a existência do cinema na pequena vila em plena década de 1920, muito mais cedo do que podíamos imaginar. Clodomiro cresceu no auge da literatura de cordel. Muito pequeno já escutava a velha Ursulina recitar “As Proezas de João Grilo” ou “O Pavão Misterioso”.

Destaca-se no seu relato sua mão, a Dona Santa, uma mulher inteligentíssima, professora e empreendedora. Perseguiu o objetivo de obter educação superior para os seus filhos, enfrentando o ambiente hostil. Conseguiu enviar Clodomiro para estudar no recém-inaugurado Patronato Agrícola de Bananeiras (1924). Convenceu o marido a vender a propriedade, para que a família pudesse ir viver na capital para viabilizar a educação da prole.

A conclusão dos estudos em Bananeiras coincidiu com a chegada da família na antiga Cidade da Paraíba (1929), poucos meses antes do assassinato do presidente João Pessoa que atraiu o caos das lutas políticas. Toda a família acabou se envolvendo nos distúrbios, a ponto de contribuir com recursos para a aquisição de armas e munições para as tropas que combatiam o Coronel José Pereira em Princesa.

Em meio a estes graves acontecimentos, Clodomiro foi cursar agronomia na cidade mineira de Passa Quatro, onde pôde testemunhar lutas entre paulistas e o exército, nos anos de 1930 e 1932. Em terras mineiras ele aproveitou a sua condição de músico excelente, virtuose no sax e na clarineta, para liderar bandas que tocavam jazz, estilo musical recém chegado ao Brasil.

Quando se formou retornou à Paraíba e imediatamente começou a trabalhar na extensão agrícola em vários municípios. Esteve em Esperança, Areal, Sapé e Patos (nesta última ele se casou). O mano Flávio também se tornou agrônomo, enquanto que os dois irmãos mais novos estudaram medicina no Rio de Janeiro, de onde nunca mais saíram (dona Santa foi residir pertinho deles e Clodomiro também, anos mais tarde).

Um fato insólito foi ele ter sido prefeito de Santa Luzia do Sabugi (1940), nomeado pelo interventor Ruy Carneiro, com a missão de pacificar os ânimos exaltados da cidade. Era o tempo do Estado Novo, a ditatura imposta por Getúlio Vargas, em que os prefeitos eram indicados. Ele tentou agir com neutralidade nas querelas locais na sua condição de forasteiro, mas acabou pedindo demissão doze meses mais tarde, sob a alegação que não conseguiu cumprir sua missão apaziguadora.

Sua trajetória mostra que há cem anos já existia uma estrutura educacional capaz de viabilizar a carreira de um jovem com talento oriundo do interior. Se houvesse a vontade resoluta dos pais, o triunfo profissional era possível, como aconteceu com os filhos de Dona Santa.

Seu livro foi publicado em 1996 quando passava dos 84 anos de vida. Anotou que pretendia lançar um segundo volume, mas não consta que tenha feito. Ao longo da vida, sempre aparecia na região para visitar amigos e parentes em vários locais do Seridó Paraibano.

As cidades em que viveu — Pedra Lavrada, João Pessoa, Areal, Esperança, Patos, Santa Luzia e Rio de Janeiro — trouxeram-lhes a inspiração  que o transformou (talvez involuntariamente) em um memorialista, o primeiro da nossa terra seridoense. As suas narrativas centradas na Pedra Lavrada do início do século XX constituem um testemunho precioso para análise de nossa evolução a partir do imenso município picuiense de outrora.

Por Alisson Pinheiro

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