Maria Matilde do Carmo, uma matriarca picuiense
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Maria Matilde do Carmo nasceu na cidade de Picuí em 1900. Ela cresceu em um lar progressista para a época, por ser urbano e chefiado por uma mulher independente que sobrevivia da profissão incomum (no tempo) de alfaiate de roupas masculinas. Cedo assimilou um cabedal imenso de conhecimento das coisas práticas e recebeu incentivos para estudar a ponto de se tornar uma amante dos livros!
Sua existência se passou no período mais trágico da história humana (e também das maiores transformações). Ela foi contemporânea das Revoluções de 1917, na Rússia, e de 1930, no Brasil, do surgimento dos fascismos, das Duas Guerras Mundiais, dos governos de Getúlio Vargas, do Golpe de 1964, da Contracultura, do fracionamento do imenso município picuiense, bem como da inserção das mulheres na economia, a qual ela foi uma das pioneiras em sua geração.
Contudo, não foi promissor o início da sua caminhada, porque se casou na adolescência e foi viver no campo. O casal foi residir no sítio Casa de Pedra que abrangia as terras onde está erguido o Instituto Federal. Os filhos foram aparecendo e apenas oito se tornaram adultos, vindo a formar grandes famílias: Cidrônia, Inocência, Júlia, Josefa, Antônio, Luiz, José e Sebastião.
Em meio a trabalhos duríssimos, sua alma delicada não murchou. Enquanto ensinava seus filhos as primeiras letras, ela teve a feliz iniciativa de criar uma escola em casa. A fama de professora excelente se espalhou e atraiu muitos alunos, fazendo com que o analfabetismo minguasse nos arredores. O ambiente era austero e de aprendizado, mas também serviu de cenário para o início de namoros que resultaram em muitos casamentos.
Os rigores da vida na zona rural não a distanciaram da cultura, pois encontrava tempo para ler e para organizar autênticos saraus. Após o jantar todos se reuniam na sala e, em dias alternados, Romualdo (o filho do coração) tocava gaita, seu marido narrava “causos”, enquanto que ela recitava os folhetos de cordel mais consagrados. Estas performances serviram para despertar o gosto pelas coisas do espírito nos presentes.
Mas o temor das secas pairava sobre tudo e todos. Assim é que na grande estiagem de 1958, seu marido precisou trabalhar na construção do grande açude de Acari, com longas ausências de casa. Em paralelo, ele adquiriu uma pneumonia que minou a boa saúde que sempre desfrutara. A doença despedaçou a rotina da família, pois a busca de cuidados médicos inadiáveis provocou a mudança para a Rua Ferreira, n. 10, aonde ele veio a falecer no ano de 1961.
Estes acontecimentos adversos abalaram as finanças domésticas e ela reagiu se tornando comerciante de calçados, com atuação em várias localidades próximas. Também passou a viajar para cidades distantes com objetivos comerciais e religiosos, sem deixar de participar intensamente da educação e da criação dos seus netos. Costumava tomar emprestado livros do seu ilustre vizinho Abílio César que lia com gosto. Tantas tarefas sendo feitas demonstram uma rara habilidade na administração do seu tempo útil!
Quando retornava de suas viagens trazia agrados para os netos e netas, como as bijuterias de Juazeiro do Norte (apreciadíssimas) e o saboroso pão recife compartilhado com todos. Pensando sempre na boa saúde da criançada se valia de fortificantes hoje esquecidos, como o “leite ferrado”. Por tudo isso é que a vida fervilhava em sua acolhedora casa da Rua Ferreira, sempre repleta de parentes e amigos, tendo residido com ela, em certos períodos, as famílias de suas filhas Josefa e Júlia e muitos netos que estudavam em Picuí.
O processo que culminou com sua morte foi doloroso, por meio de uma doença neurológica que minou de maneira rápida a sua sanidade mental, a ponto de tirar seu sono e incorporar manias de perseguição. Buscaram a ajuda dos médicos, mas o problema só aumentava. Logo passaram a vigiá-la para que não fugisse de casa; certa vez negou-se a descer do ônibus que a trazia de uma viagem devido a temores imaginários! No fim, recusava-se a comer de maneira tão veemente que muitos suspeitam que sua morte foi causada pela inanição.
Ela viveu apenas 73 anos, mas deixou um legado na educação picuiense e para o feminismo, pelo seu pioneirismo de guerreira incansável que ousou sair do ambiente doméstico para extrair sua subsistência do comércio. Entretanto, a maior herança que ela deixou para sua família foi de cunho moral e intelectual, pois vê-la lendo, lecionando ou gerindo sua vida privada, serviu de inspiração imorredoura para filhos e netos, pois sabemos o quanto gerações sucessivas ficam estagnadas na pobreza e na ignorância pela falta de uma liderança inspiradora.
Viver bem a vida depende muito mais de nós, do emprego que damos a ela, e não do número de anos vividos. Assim é que Maria Matilde viveu uma vida plena nesse mundo, por ter deixado um legado cívico, educacional e ético para todos que a conheceram. Os seus herdeiros têm seguido as suas pegadas, como Joselma, que deu início a indústria do Picolé Caseiro, Zé Onildo, o idealizador deste Portal do Curimatau e da Rádio Sisal FM de Picuí, Lucas Marques, jovem promessa da política picuiense, ou mesmo este escrevinhador que tenta preservar a trajetória extraordinária de sua avó para que sirva de estímulo para as novas gerações deste recanto geográfico de onde viemos.
É um fato que os seus descendentes herdaram o seu dinamismo cultural e empreendedor, como demonstra o triunfo deles em todas as áreas da vida !!
Alisson Pinheiro