O Sobrado de Azulejos do Coronel Manoel Lucas
Por Alisson Pinheiro - em 1 mês atrás 177
Arquitetura é a música petrificada.
(Goethe)
No Centro de Maceió existe o sobrado que pertenceu ao Barão de Atalaia, outrora com uma linda vista para o mar. Por pirraça, o Barão de Jaraguá construiu um casarão na frente, mais alto, para que seu rival fosse privado da visão que tanto valorizava. Algo semelhante aconteceu em Picuí, tendo como pano de fundo a rixa política e pessoal entre os primos e cunhados Manoel Lucas de Macedo e Antônio Xavier de Macedo, que envolveu a construção de dois sobrados transformados, mais tarde, em parte da identidade picuiense.
Essa rivalidade entre primos e cunhados tem raízes políticas e econômicas. Entre 1890 e 1904, Manoel Lucas e Antônio Xavier se revezavam no poder local que emanava da câmara municipal. Neste quesito, a vantagem ficou com Manoel Lucas que foi pioneiro como gestor escolhido pelo parlamento (1890) e na função de prefeito (1904). Acrescente-se que, além da concorrência na política, os dois eram comerciantes e disputavam a mesma clientela.
Quis o destino que essa rivalidade gerasse uma obra de arte arquitetônica, aspecto que divergia do objetivo inicial de Manoel Lucas, o de fazer uma demonstração pública de riqueza e poder. Involuntariamente, o sobrado que ele mandara construir para ofuscar o do seu rival tornou-se um marco indelével da paisagem urbana picuiense.
A construção de um majestoso sobrado de azulejos numa cidade do interior paraibano não deve ter sido tarefa fácil. Uma fez elaborado o projeto arquitetônico e contratada a mão obra especializada, era preciso encontrar portas, gradis, azulejos, e uma infinidade de apetrechos que não existiam na região e nem mesmo no Nordeste. Se fosse menos ambicioso e vaidoso, Manoel Lucas teria se contentado em adaptar os materiais existentes nas proximidades, como era comum, e não teria optado por artigos somente existentes no estrangeiro. O bom senso ficou de lado nesta decisão, pois seus objetivos eram melindrar o rival e impressionar seus contemporâneos, custasse o que custasse. Por isso, optou pela construção mais dispendiosa e demorada.
Durante muito tempo se pensava que os azulejos vieram de Portugal, quando na verdade são franceses. A prova veio através de uma placa cerâmica, que se descolou, em cujo verso aparece nitidamente o logotipo da fábrica, a cidade de Desvres na Normandia francesa.
De Portugal veio mesmo os ornamentos superiores no formato de uma pinha portuguesa, tipo de fruto que personifica o mais alto grau de iluminação espiritual, mito herdado da Antiguidade Clássica. Estas peças eram manufaturadas numa indústria que, fundada em meados de 1860, só fechou as portas na década de 1980 (a fachada dessa empresa pode ser admirada na rua onde ela sempre funcionou, em Nova Vila de Gaia, às margens do Rio Douro, de frente para a Cidade do Porto).
Após a compra destes materiais, muitas vezes restava a demora da chegada, porque vinham em navios da Europa.
Quando aportavam no Recife, eram levados até Picuí nas costas de animais, a partir de Itabaiana onde findava a linha férrea (quando o trem chegou a Campina Grande, um ano antes da conclusão do sobrado, a facilidade de deslocamento não foi aproveitada, pois tudo já tinha sido adquirido).
A sua construção aconteceu nos últimos anos em que esse tipo de prédio estava na moda, a tempo de serem incorporadas as novidades que inexistiam nos sobrados antiquados de outrora. Assim é que o exemplar picuiense possui o diferencial de conter, na parte mais alta da parede frontal (chamada de “platibanda” pelos arquitetos), detalhes que os sobrados mais antigos desconheciam, tais quais espaços vazados, entre miniaturas de colunas gregas do estilo dórico, unidas por arcos inspirados no classicismo. Além do mais, os adornos portugueses coloridos em formato de pinhas e de um pináculo, são muito mais atraentes do que as peças mais simples e com menos cores do sobrado de Antônio Xavier. A título de comparação, a cor azul dos azulejos franceses era de uma beleza arrebatadora e os sete metros de altura, tornavam a construção portentosa.
A Arquitetura nomeia de eclético o estilo do sobrado construído a mando do Coronel Manoel Lucas. Uma edificação eclética é formada pela mistura de vários estilos arquitetônicos anteriores, um modo de construir surgido em Paris na segunda metade do século XIX. Uma novidade marcante do ecletismo foram as peças manufaturadas em ferro forjado, cujo exemplo são as grades externas inseridas nas pequenas varandas do solar picuiense.
O sobrado do Cel. Manoel Lucas é especial por causa da sua dimensão, da alta qualidade dos materiais utilizados, dos detalhes singulares da fachada e porque, talvez, seja um dos últimos a ser erguido com suas características, pois esse estilo de construção estava exaurido no início do Século XX.
O custo financeiro para erguer um sobrado era imenso, como comprova uma curiosa história. As duas famílias mais destacada de Alcântara, Maranhão, estavam na expectativa da vinda do Imperador Dom Pedro II que inevitavelmente visitaria a cidade, a segunda mais rica da província. Como eram também rivais, iniciou-se uma disputa para quem faria a construção mais suntuosa, digna de receber real figura. Os trabalhos foram iniciados, mas os gastos se tornaram tão excessivos que o dinheiro secou dos dois lados e as construções nunca ficaram prontas (a ironia do destino é que o imperador jamais colocou os pés no Maranhão, pois só teve paciência para chegar até o Rio Grande do Norte). As ruínas do par de casarões ainda existem, testemunhas arrasadas do poder (construtivo e destrutivo) da inveja.
Em Picuí ainda resistem os sobrados, embora alguns tenham sofrido descaracterizações incontornáveis. É uma sorte grande que o exemplar erguido pelo Coronel Manoel Lucas segue com o aspecto que sempre teve, mesmo após a profunda reforma efetuada pelos atuais proprietários, Méro e Fátima, que respeitaram as características originais. Esse ato traz a esperança de que os picuienses do porvir terão o privilégio de crescer na adorável companhia dos nossos belíssimos casarões.