Sobre Livros, Leituras e Picuídades
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Alisson Pinheiro
O que vem à mente quando falamos em um bibliófilo? Seria aquela pessoa que ama os livros, um colecionador de obras raras e preciosas, de boas edições e também leitor contumaz? Essa clássica conceituação é deixada de lado quando se conhece José Alisson Pinheiro de Araújo. Além de um bibliófilo e leitor voraz, é um leitor qualificado; uma pessoa que vive, literalmente, entre livros.
Dono de uma biblioteca particular com um acervo de três mil títulos, só este ano ele já leu 41 e fez resenhas de quase todas as obras. Dizer que ele caminha passo a passo com os livros não é uma hipérbole: é uma realidade que pode ser constatada ao encontrá-lo, pois leva consigo um exemplar, até mesmo numa caminhada à beira-mar.
Para ele, colecionar livros tem valor formativo e científico. Livros, autores, crítica literária, ficção, realismo e outros, fazem parte, de forma corriqueira, de seus bate-papos. Paraibano de Picuí, formado em Direito e radicado em Alagoas há mais de vinte anos, Alisson foi classificado pelo site Estante Virtual como o maior comprador individual de livros no Estado. No dia em que esse grande leitor completa mais um ano de vida, vai ao ar essa inspiradora edição do Tribunal Regional de Talentos.. Boa leitura!
– Qual foi o seu primeiro contato com os livros?
– Minha avó gostava de ler e transmitiu esse hábito para minha mãe. No meu tempo de garoto, existiam em minha casa muitos livros dentro de uma imensa caixa e eu gostava de limpá-los e de folheá-los. Antes gostava demais de gibis do Tex, do Bolinha e dos personagens da Disney. Em um momento comecei a ler livros didáticos de ciência humanas que meus irmãos tinham utilizado e fui tomando gosto por leituras mais densas que culminaram com o abandono dos gibis por volta dos treze, quatorze anos.
– O que caracteriza um texto literário?
– Um texto literário registra a trajetória do homem no mundo, muitas vezes, mais fiel do que a própria história oficial, que se ocupa em atender interesses e vaidades. Um texto de jornal, escrito ou digital, é rapidamente substituído em horas, enquanto que um texto literário torna-se perene, devido à preocupação estética que lhe é inerente. Vê-se que um texto científico utiliza as palavras com sentido objetivo e conciso, enquanto que o texto artístico utiliza metáforas para provocar reações emocionais nos receptores. É algo mais profundo e humano, pois exige reflexão e as percepções adquiridas em outras experiências. Vejam que um escritor pode ser permitido imaginar uma fábula sem saber que é a moral: a moral fica por conta do leitor ou do tempo. Este é o “barato” de texto literário, que pode divertir, ensinar e agregar experiências que serão úteis um dia.
– Ainda precisa sentir o papel, o cheiro da tinta, ou já está hiperconectado?
– Ainda prefiro o livro tradicional, por questão de hábito. Ainda não senti necessidade de livros digitais, pois tenho muitos livros (de papel) em casa aguardando sua vez de serem folheados e lidos.
– Prefere os livros clássicos ou contemporâneos?
– Qualquer leitura de um bom livro é válida. Contudo, sempre dou preferência aos clássicos, que foram aprovados pelos leitores ao longo das décadas e séculos, sem chances de desapontamento. Mas também não esqueço os autores contemporâneos geniais, como José Saramago, o sul africano J.M. Coetzee, o americano Philip Roth e o nosso compatriota Rubem Fonseca. A questão que surge é no sentido de que uma vida leitora produtiva de cem anos não seria suficiente para ler todos os clássicos que já foram escritos. Assim, a leitura de uma obra nova medíocre pode significar abdicar a leitura de um grande livro para sempre. Para mim, é sempre um dilema ler uma obra contemporânea por esse motivo temporal. Mas há situações inusitadas como a de uma amiga que me deu “A cabana” de presente e ficou cobrando a leitura. Desse não pude escapar (risos). Vale frisar que “clássico” em grego significa “perfeito”. Assim, um clássico não é um livro difícil como muitos acham, mas apenas muito melhor escrito do que a maioria. O argentino Jorge Luis Borges foi sutil ao afirmar que clássico “É um livro que lemos de certo modo. Não é um livro escrito de certo modo, mas lido de certo modo. Uma leitura feita com um respeito que faz com que esse texto mude”.
– Por meio da leitura alcançamos um rico vocabulário, uma grande percepção e o que mais?
– Por meio da leitura, dialogamos com pessoas que, em geral, são mais sábias do que nós, que viveram com mais intensidade do que nós. E esse contato fatalmente melhora nosso vocabulário e nos ajuda a acrescer nossa percepção da vida e do mundo. O que podemos constatar é que o que é relevante em literatura torna-se um bem coletivo e que as grandes invenções do escritor tornam-se patrimônio da língua. Veja o caso do termo “sósia”, que significa pessoa extremamente parecida com outra. Ele tornou-se corrente a partir de um personagem com esse nome que era idêntico a outro, existente numa das comédias do grego Plauto, escrita há 2.200 anos.
– Que livro mais te impressionou ou marcou sua vida?
– Quase todos, mas dois tem destaque especial. Um deles são os “Ensaios” do francês Michel de Montaigne, onde ele fala sobre quase tudo, dando sua opinião sensata enquanto aplica aos temas comentados toda a sabedoria das obras da Antiguidade, numa síntese genial. Outro livro marcante foi o “É isto um homem?”, do italiano Primo Levi que sobreviveu ao pior dos campos de concentração (Auschwitz) e teve forças para contar o seu cotidiano, onde a vida ou a morte dependia, às vezes, de migalhas de pães que caíam no chão; neste livro é possível penetrar fundo no âmago da natureza humana, através de uma experiência terrível.
– Há vida inteligente fora da literatura?
– Sim, claro, mas a literatura é especial porque para ela converge a identidade cultural de um povo e até de civilizações. Observem a importância de Shakespeare, de Dante, de Camões e de Goethe para a identidade dos seus países respectivos.
– Qual a fronteira entre o leitor e o possível escritor?
– É bem tênue. Porém, gênios como Graciliano ou Jorge de Lima não nascem todo dia. Há livros e livros, mas os grandes textos são mais raros do que ouro. Veja que dos milhares de obras escritas na Europa entre 1500 e 1700, só uns quatro ou cinco chegaram até nós. O restante foi esquecido. E esse “peneirão” continua existindo.
– A breve narrativa ou um romance?
– Se a história é bem contada, não importa a sua extensão.
– Você teria uma espécie de manual de como se forma um leitor?
– É mais fácil ser leitor se tivermos a sorte de nascer em um lar que o favoreça. Contudo, acho que é possível aprender a gostar de ler por meio da força de vontade, da consciência de que a leitura é essencial para nosso espírito. Muitos dos nossos colegas estão na metade da vida. Já é hora dos que não gostam de ler adquirir esse hábito, para ninguém sentir saudades do trabalho depois da aposentadoria, pois o tédio aflige menos aos que se dedicam à cultura. Uma forma ideal para isso é ler diariamente por vinte ou trinta minutos e, em três ou quatro meses, forma-se o hábito. Só assim poderemos perceber que a leitura afasta o tédio, instrui, humaniza e diverte ao mesmo tempo.
– A leitura continua imprescindível?
– Sim, pois ela nos mostra um mundo maravilhoso, que deslumbra os seus iniciados. A cultura nos separa do mundo irracional. Michel de Montaigne (no que concordo plenamente) afirmou em um dos seus ensaios que fazer amor, uma boa conversa com nossos amigos e uma infinidade de outras coisas são experiências mais prazerosas do que a leitura. Porem, tais alegrias não são duradouras ou acontecem raramente, enquanto que os livros estão à nossa disposição a qualquer hora, sem reclamar ou fazer cara feia. Se o prazer não é tão intenso como nos outros citados, ele é mais constante e demorado. Por isso é que eles sempre serão necessários para nos transmitir novas experiências, conhecimentos e nos afastar do abismo que é o vazio interior, primo irmão do tédio.
– E os filósofos?
– A diferença entre um escrito filosófico e um clássico da literatura é de estilos apenas. Tanto a grande literatura quanto a filosofia trazem um salto de qualidade em nossas percepções; ambas divertem, distraem e instruem com igual intensidade.
– E a poesia?
– A boa poesia, de um Drummond, de um Augusto dos Anjos, tem uma complexidade que se reflete no número menor de seus leitores, se comparados aos que leem prosa. Isso é explicado porque a poesia depende das conotações, do ambiente e da cadência das palavras; a inspiração aqui tem seu reino. Por isso que Castro Alves, morto aos 24 anos, tornou-se imortal. Já a prosa é diferente, exige experiência, disciplina, tanto que são raríssimos os autores de prosa que conquistaram fama muito cedo. José Saramago mesmo começou a ser reconhecido depois dos cinqüenta anos.
– O que você tem a dizer para dos conterrâneos que ainda não incorporaram a leitura em suas vidas?
– Repensem essa postura. Lembrem-se que o que nos diferencia dos animais é o pensamento e a cultura. Não esqueçam que tudo o que somos, em termos técnicos e de civilização, é fruto da reflexão e do esforço de uma minoria que leu e estudou muito. Observem que as idéias movem o mundo e que devemos conhecê-las visando obter mais conhecimento e entendimento, para não sermos ludibriados por ‘falsos profetas’ e picaretas de todos os tipos.