A Educação do País em processo de erosão

Por - em 6 anos atrás 2555

moacirA legislação da Educação Escolar (LDB, art. 1°, § 1°) no Brasil é mais do que suficiente para direcionar os rumos do ensino. Educação e Ensino são conceitos fundantes enraizados na Constituição Federal (art. 205/206), na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, art. 1°, § 1°) e no Plano Nacional de Educação-PNE (art. 2° – Diretrizes).

O foco é o desenvolvimento humano, a formação para uma cidadania responsável, a qualificação para o trabalho e o prosseguimento de estudos ao longo da vida, de acordo com o projeto-cidadão de cada um.

O artigo 214 da Carta Magna sinaliza claramente as obrigações do Estado Nacional “para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos…”

Apesar da profusão de leis, normas e assemelhados no campo educacional, os legisladores brasileiros revelam-se incansáveis em produzir cada dia mais ordenamentos legais, repetitivos, algumas vezes, e incongruentes, outras.

Deveriam, ao contrário, cumprir a responsabilidade pública e funcional de fiscalizar as leis que existem e balizar penas contra gestores recalcitrantes. Não o fazem por conveniência política, como também, por conveniência, tem resistido em cumprir a Lei de Responsabilidade Educacional, prevista na Meta 20, Estratégia 20.11, da Lei do PNE.

A conduta legisferante dos parlamentares brasileiros no campo da educação não é incomum em outros contextos fora do Brasil. Entre nós, é apenas exacerbada. Martin Luther King cobrava uma conduta responsiva e responsável dos legisladores norte-americanos, em contato com membros da Comissão de Educação do Congresso de seu país.

Em certa oportunidade, chegou a dizer: “Não me interessa saber as leis que os senhores estão dispostos a fazer, mas, sim, quero saber o que os impede de cumprir as leis já feitas e sempre descumpridas”.

Historicamente, o Brasil tem-se caracterizado por legisladores e gestores públicos tutelados por interesses subalternos no campo dos direitos sociais, entre os quais está a educação (CF, art. 206). Aqui, o prejuízo direto incide sobre toda a sociedade, mas, sobretudo, sobre o universo dos alunos mais pobres, cujo ensino e aprendizagem são deficientes e deficitários.

Se o Brasil não assumir a Educação Básica como bússola para uma cidadania participativa e solidária e como pré-condição para garantir os rumos do desenvolvimento desejado, a sociedade nacional continuará condenada a um distanciamento crescente em relação aos países de desenvolvimento avançado e em contínuo processo de evolução.

Nestes, enquanto se discute a inclusão de tecnologias de ponta no currículo escolar e na formação dos alunos, no contexto da Quarta Revolução Industrial ou da Indústria 4.0 (uso de inteligência artificial, computação cognitiva, realidade virtual, internet das coisas, computação em nuvem, blochchain, veículos autônomos e 5G – a quinta geração de comunicações móveis, em que tudo se interliga e se conecta), no Brasil, insistimos em cultivar a atenção deslocada através de voos rasantes em torno de dimensões secundárias, alimentadas por visões ideológicas primárias, como é o caso da indução de uso de uma metodologia de alfabetização, quando, de fato, isto é competência dos sistemas de ensino, no âmbito de sua autonomia.

O papel da União, neste caso, será tão somente assegurar o Processo Nacional de Avaliação, tendo em vista a contínua melhoria da qualidade do ensino (LDB, art. 9°, Inc. VI).

Quando asfixiada por disputas ideológicas que impedem a sociedade a caminhar na direção dos objetivos fundamentais da República (CF, art. 3°), a educação fica desfigurada e esvazia seu conteúdo de relevância para a cidadania cujos alinhamentos formativos, de natureza axiológica e teleológica, constam do art. 2° da LDB: pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

A pedagogia, enquanto ambiente de confluência das ciências da educação, não pode ser asfixiada por núcleos ideológicos restritos, sob pena de perder sua dimensão transcendental, que consiste em cuidar do desenvolvimento humano em amplitudes desfronteiradas. E mais: o exercício de ideologias na gestão da educação produz processos de erosão no conjunto do ciclo de aprendizagem dos alunos, além de deixá-los, juntamente com seus professores, olhando para o chão, em vez de permanecerem sempre olhando para a frente.

É inegável, e a sociedade tem registrado isso com veemência, que estamos atrasados em cronogramas e emperrados em questões artificialmente postas. Como sair deste labirinto, movidos que estamos pelo sentido de urgências? Antoine Laporte lembra que urgência não é o que tem que ser feito agora, mas o que já deveria ter sido feito.

O INEP e o FNDE estão com suas agendas em atraso, mas… as escolas estão em funcionamento. E agora José?!

Nossas urgências no campo educacional são de uma clareza meridiana. Aos gestores cabe não apenas reunir as prioridades conhecidas já de todos, mas também alinhar as precedências, de acordo com a diversidade de contextos regionais e locais.

Entre umas e outras ( prioridades/precedências), não há como retardar providências-resposta no campo das definições sistêmicas, envolvendo: 1) o ENEM; 2) a Reforma do Ensino Médio; 3) a Implementação da BNCC; 4) os Novos Balizamentos do FUNDEB; 5) a Regulamentação do Regime de Colaboração com Estados e Municípios; 6) o Custo Aluno-Qualidade; 7) a Carreira Docente e a correspondente formação dos professores; 8) o Ensino Integral no palco da escola de tempo integral; 9) o Ensino Médio Noturno; 10) o uso adequado de tecnologias educacionais em todas as escolas; 11) O perfil do professor de notório saber; 12) o resgate da Educação Básica como alinhamento inteiriço de processos integrados, e, não, como acontece hoje: entrepartes de um todo desarticulado; 13) a oferta de Educação Profissional ao alcance de todos; 14)o resgate da qualidade dos cursos de graduação; 15) atualização de catálogo de cursos de graduação, com a oferta de novos programas consentâneos com as exigências de um mercado em contínua evolução; 16) o acompanhamento e controle da oferta de Educação a Distância, que funciona, hoje, com baixíssimos níveis de acompanhamento e supervisão; 17) o fomento e aperfeiçoamento das ações de assistência técnica e financeira a estados e municípios; 18) a implantação de um sistema de articulação com estados e municípios, com dinâmica reconceituada e diferenciada, respeitando as singularidades das regiões e de cada ente federado; 19) a implantação de um sistemas de creches com funcionamento em múltiplas modalidades, de tal sorte que se comece, de fato, a cumprir a Meta 01 e correspondentes Estratégias do Plano Nacional de Educação; e, por fim, 20) o realinhamento das próprias instâncias do MEC (secretarias e órgãos vinculados) para que não continuem a operar como irmãos xipófagos: unidos no corpo, mas separados nas visões.

Este processo de distonia sistêmica, aliás, tende a se agravar se aos gestores atuais faltar a compreensão de que, em educação, não se trabalha com produtos, mas com processos. E mais: que os processos aqui tem um único objetivo: elevar os padrões da qualidade da aprendizagem dos alunos. Para tanto, não há como afastar o olhar dos gestores, do binômio: igualdade/equidade.

A igualdade refere-se à disponibilidade de condições igualitárias para cada aluno aproveitar maximamente as oportunidades de aprender e de exercer o direito à educação. A equidade, por sua vez, diz respeito à obrigatoriedade de os sistemas de ensino disponibilizarem, a todos os alunos, oferta educacional em tríplice dimensão: no acesso, nos processos e nos resultados.

Como assinala documento da UNESCO, a educação deve tratar de forma diferenciada o que é desigual na origem para se chegar a resultados na aprendizagem equiparáveis e não reproduzir as desigualdades presentes na sociedade (UNESCO, Educação de Qualidade Para Todos, OREALC, 2007:13). No Brasil, vamos ficando cada vez mais distantes do horizonte da equidade na educação.

O binômio igualdade/equidade somente irradia as políticas públicas da educação quando chega a cada escola e, não, apenas, a algumas. Fora disto, prevalecerá o ilusionismo político de sempre! E, para chegar à sala de aula e repercutir positivamente na aprendizagem dos alunos, há rotas a percorrer e procedimentos a adotar, sobretudo em sociedades desiguais como a nossa. Há duas décadas, a Comissão Internacional sobre Educação da UNESCO apontou os seguintes seis eixos a seguir (apud. Pourtois, JEAN-PIERRE e Desmet, HUGUETTE, A Educação pós-moderna, Loyola, 1999:14):

1) Educação e cultura: Como se encaminhar para o domínio de si e a compreensão do mundo?

2) Educação e cidadania: Como pode a educação forjar cidadãos livres e responsáveis?

3) Educação e coesão social: O que pode fazer a educação para facilitar coesão social, ameaçada não só nos países em desenvolvimento, mas também nos países ricos?

4) Educação, trabalho e emprego: De que conhecimentos e de que know-how os indivíduos terão necessidades para participar ativamente da economia e do mercado de mão-de-obra?

5) Educação e desenvolvimento: Como pode a educação contribuir não somente para o progresso, mas também para a difusão equilibrada deste em todo o meio econômico e social?

6) Educação, pesquisa e ciência: Como fazer para que cada indivíduo tenha a possibilidade de assumir o que, no progresso científico e tecnológico, responde as necessidades de seu trabalho e de sua vida cotidiana?

Dos gestores da educação, a sociedade brasileira espera prumos e rumos. Prumos para sinalizar claramente que, se a educação escolar é constituída de processos sistêmicos, só há um caminho a seguir: regime de colaboração e articulação sistêmica com estados e municípios.

Rumos para sinalizar diretrizes claras e objetivos induvidosos e plurais, em consonância com a pluralidade das situações geossociais dos sistemas de ensino, das escolas, dos professores e dos alunos. Dos legisladores, esperam-se vias sem desvios. Vias que trabalhem os conceitos operativos de educação inclusiva, integral, integrada e de relevância social. E educação sem desvios, que, portanto, cobre dos gestores o cumprimento da Lei de Responsabilidade Educacional.

Para evitar a contínua erosão da educação, cabe ao MEC, a par da função executiva, cumprir também função antecipatória: isto implica em resgatar a capacidade de planejamento sistêmico, envolvendo novos formatos de diálogos com os entes federados.

Um aspecto apresenta-se impositivo: não dá para operar a máquina do MEC com os faróis desligados! A situação de paralisia da instância federal tem efeito dominó sobre as redes de escolas. Por isso, sem um planejamento de curto, médio e longo prazo, a sociedade não conseguirá imaginar cenários de uma aprendizagem relevante e positiva para os alunos que acorrem às escolas.

Gerir a burocracia do MEC não é suficiente para “coordenar a Política Nacional de Educação, articulando níveis e sistemas de ensino” (LDB, art. 8°, §1°). Também, não é suficiente para clarear o diálogo com a complexa malha de sistemas de ensino do país.

Confundir estes dois conceitos poderá levar a proliferação de sistemas “guetizados” de gestão, circunstância que contribuiria para a erosão ainda mais rápida da educação do País.

A situação da Educação Escolar no Brasil é tão dramática que só há uma direção: entrar em regime de urgência a longo prazo.!!! O paradoxo não está na afirmação, mas em um país que insiste em tratar a gestão da educação como fator político-ideológico.

A questão central parece ser outra: por que o Brasil vive em processo de desmonte do Plano Nacional de Educação/PNE? Responder a esta questão é o primeiro passo para estancar as causas do processo de erosão da educação brasileira.

Moaci Alves Carneiro

Doutor em Educação/Paris – Ex-professor da Faculdade de Educação da UnB – Diretor do Encontro de Laboratórios de Cidadania e Educação/ENLACE, Brasília-DF.