O Outro
Por - em 7 anos atrás 1423
O “outro” para além do seu significado objetivo é também aquilo que o meu olhar alcança, adjetiva e define. O homem medieval visto pelo iluminista do século XVIII foi chamado de sombrio e obscurantista; o agricultor visto pelo urbanista foi chamado de rude e ingênuo; o homem vindo do leste visto pelo europeu civilizado foi chamado de bárbaro; o sotaque regional do nordestino brasileiro visto pelo falar afrancesado da corte carioca foi chamado de arrastado.
Poderíamos nos prolongar nas constatações, que são muitas na trama das sociedades humanas, todavia, estes exemplos podem no servir para pensarmos como o recurso do “olhar” direcionado aos outros me informa aquilo que eu sou e também o que eu não quero ser.
Emmanuel Lévinas (1905), nascido na Lituânia, filho de família judaica, filósofo da fenomenologia, lançou crítica ao pensamento ocidental ao dizer que somos herdeiros de uma tradição egocêntrica que compreendeu o “eu” como centro do universo. Em sua proposta de uma nova ética, Lévinas deixou claro que ao olhar o rosto do outro se deve guardar uma distância, não uma distância de temor, frieza ou medo, mas uma distância necessária para o respeito pelo que a pessoa é e representa.
Quem sabe, ao indicar o rosto do outro com reverência, o pensador da alteridade tenha tocado no “espinho” que fere nossa carne, no drama e na inquietação que é coexistir em sociedade, uns ao lado de outros.
Vivemos o tempo da “adjetivação” imediata, com pouca responsabilidade sobre o conhecimento que temos do outro. Isto não é novidade na jornada humana, mas é inegável que o advento das tecnologias da comunicação revelou consigo muitas de nossas forças atávicas, como o ódio e o ataque irracional.
Em tempos de forte culto à personalidade, urge nomearmos o outro, fazendo isto quase que instintivamente numa necessidade de reforçarmos a própria superioridade, valor e prestígio. O pecado da depreciação alheia e do maldizer, da desqualificação e dos rótulos, reconfiguraram-se na teatralidade das relações, mostrando o quanto necessitamos de reconciliação.
Na perspectiva de nossa fé cristã, o “outro” é a possibilidade que temos de ver e tocar o próprio Cristo Jesus, a Palavra feita carne na história. Por isso, formamos grupos, comunidades, serviços e associações; guardamos o princípio da comunhão e do amor fraterno, tão importantes ao nos conferir fundamento e identidade.
O grande desafio é vivermos numa sociedade que nos últimos duzentos anos exalta continuamente o indivíduo e sua centralidade no mundo, alimentando a todo instante o velho Narciso em nós e que, ao mesmo tempo, revela um sujeito imaturo, por vezes solitário e carente de companhia e presença.
O cristianismo do século XXI está, pois, desafiado a equacionar a importância de cada pessoa com a urgência do crescimento humano-afetivo que abre o sujeito ao relacionamento, à cooperação, aquilo que chamamos de “dar a vida” pelos amigos, pelo irmão, pelo outro que traz consigo a imagem e semelhança de Deus, especialmente no olhar dirigido com amor e compaixão aos mais frágeis e desafortunados desta terra.
Esta tarefa será de todas as pessoas com boa vontade, compromisso de todos os homens e mulheres que não aceitam um mundo dividido pelo ódio, preconceito, adjetivação mesquinha e violência. Uma cultura de paz, cultivada e sustentada pelos vínculos da família, lugar onde aprendemos os valores da convivência, diálogo e respeito, pode significar passos firmes nesta construção.
Pe. Luciano Guedes