Em defesa da democracia brasileira

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A democracia é uma construção recente no Brasil. A rigor, só podemos dizer que um regime desta natureza começou a ser construído no país a partir de 1988, com a promulgação da Constituição, resultado final de um amplo consenso democrático formado em 1985, com a passagem do poder para os civis. É certo que tal consenso foi marcado por sérias limitações, fruto das opções dos principais atores políticos da época. Tais limitações diziam respeito tanto a uma concepção restrita de democracia – onde a dimensão representativa era sobrevalorizada, restando parcos espaços institucionais de participação popular – como também ao tratamento dispensado aos principais agentes violadores de direitos humanos durante a ditadura que se findava, particularmente com a preservação da Lei da Anistia de 1979.

Tais opções trazem consequências negativas ainda para o regime democrático atual – a violência e a impunidade da ação policial brasileira são incompatíveis com um ambiente democrático, para ficarmos apenas numa feição mais grave e evidente do problema. Mas a grande virtude do momento político compreendido entre a campanha das “Diretas Já”, em 1984, e a realização final do regime democrático, com a Constituição de 1988, foi o fato de que, para os principais atores políticos envolvidos, a democracia era a única estratégia a ser considerada. Nenhuma força política de peso daquele período considerava alternativas de poder senão nos marcos de uma institucionalidade democrática.

Desde então, em pelo menos duas situações-chave, a democracia brasileira viveu “provas de fogo”, e suas instituições resistiram bem. A primeira foi o impeachment de Fernando Collor, em 1992. A segunda foi a eleição de Lula, em 2002, pelo ineditismo e simbolismo que então representava um governo de esquerda no Brasil, conduzido por um ex-operário e sindicalista. E as duas situações transcorreram na mais completa normalidade democrática. Assim, é certo que o avanço institucional brasileiro após a volta dos civis ao poder não é pequeno com relação à ditadura militar. No Chile, por exemplo, até hoje vigora a Constituição de 1980, outorgada pela sua ditadura militar, apenas reformada após a retomada da democracia.

Por isso, podemos dizer que a atual experiência democrática brasileira é a construção política mais importante da história nacional. Primeiro, pela sua solidez institucional – observada ao menos até agora. Ao contrário do que possa parecer ao senso comum, ou querer afirmar o setor hegemônico da imprensa brasileira – monopolizada, familiar e pouco acostumada aos fundamentos éticos do bom jornalismo democrático, como a presunção de inocência e o direito ao contraditório – a democracia brasileira vem funcionando bem, consideradas aquelas teorias da democracia centradas nos procedimentos e no desempenho institucional.

Pela primeira vez na nossa história republicana, os militares estão recolhidos aos quartéis, não interferem no debate político e reconhecem supremacia da autoridade civil – a principal exceção a esta regra foi a atuação dos comandantes militares com relação aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, marcada pelo boicote. Desde 1989, os presidentes da República se sucedem através de eleições democráticas e limpas, da mesma forma que os parlamentares, governadores de estados e prefeitos. Os abusos têm sido coibidos com cassações legais, avalizadas pelo judiciário. A justiça eleitoral brasileira é uma das mais eficientes do mundo, sendo permanentemente acompanhada, durante as eleições, pelos próprios partidos políticos e seus representantes. As liberdades civis e políticas são garantidas por lei e diuturnamente exercidas – apesar de ainda ameaçadas pela violência praticadas pelas polícias e pelo crime organizado, atingindo especialmente os pobres e os negros. O Ministério Público e o Judiciário atuam com independência e peso institucional só garantidos em um ambiente democrático.

Ademais, a atual democracia brasileira representou também um avanço civilizatório para o país. A estabilização da economia, a redução da pobreza, a melhoria do acesso a serviços públicos de educação e saúde, o nível de transparência e os mecanismos de controle público atualmente existentes são inéditos na história do Brasil, e são um produto estrito do ambiente democrático instalado em 1988. Sob todos estes pontos de vista até aqui apresentados, podemos afirmar que a atual democracia brasileira é muito mais sólida do que aquela vivenciada durante o período de 1945-1964, por exemplo. Pelo menos, até agora.

Entretanto, é evidente o descontentamento da maioria da população brasileira com a qualidade da nossa democracia. Nada mais justo. Começamos este artigo lembrando o caráter limitado do consenso democrático que superou a democracia no Brasil. Mais ainda, há ainda um imenso caminho a ser trilhado para a efetivação de uma cidadania social no país. A corrupção é prática comum, assim como o clientelismo e o patrimonialismo, e a qualidade da representação política é baixa, prevalecendo os políticos individualistas e pouco afeitos a compromissos programáticos ou partidários, o que justifica a pouca identificação dos cidadãos com os políticos e com os partidos. Mas só com muito “complexo de vira-lata” para se crer que estes problemas são exclusivos do Brasil ou, pior, traços da nossa “cultura política” que não são observados em outras democracias “desenvolvidas e republicanas” – como os Estados Unidos, por exemplo. Ledo engano, como bem lembra o sociólogo Jessé de Souza.

Corrupção e crise de representação política marcam as democracias contemporâneas em praticamente todo o mundo – talvez apenas com a importante exceção dos países nórdicos. Não à toa, o que há de mais importante na teoria democrática contemporânea seja a defesa da ampliação dos regimes democráticos, partindo de uma concepção procedimental de democracia para experimentos mais participativos/deliberativos de construção e ampliação de novos espaços públicos, além dos mecanismos republicanos de controle social. Uma perspectiva “ampliada” de democracia, no dizer de Boaventura de Sousa Santos. Novos movimentos sociais e partidos políticos que surgem no atual contexto – como o espanhol Podemos – são tributários a este debate.

O que há de preocupante no atual momento político brasileiro é que, pela primeira vez desde 1988, um conjunto de importantes forças políticas (os principais partidos de oposição, liderados pela tríade PSDB/DEM/PPS, e por setor importante do PMDB) e sociais (a grande imprensa e a FIESP, por exemplo), posto na oposição ao governo federal desde 2003, começa a considerar a possibilidade de chegada ao poder por outros mecanismos que não através da via eleitoral. Ou seja, o consenso democrático de 1985 começa a ser rompido – e justamente por alguns dos partidos e lideranças políticas que estiveram entre os principais fiadores daquele consenso.

É tal a motivação que fundamenta a tentativa de golpe ora em curso contra o mandato da presidenta Dilma, democraticamente eleita em 2014 para um mandato de quatro anos. Um “golpe parlamentar”, ou um “golpe paraguaio”. O momento fundador do golpe se deu logo após as eleições, com o inoportuno pedido de recontagem dos votos do 2º turno presidencial feito pelo PSDB – que findou inócuo, descabido que era. Associados ao presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha – um notório chantagista e corrupto, que controla uma ampla base de deputados do chamado “baixo clero” da Câmara, fisiológica e conservadora -, estes partidos de oposição formam um bloco que busca a todo custo artifícios que justifiquem o impeachment da presidenta.

Mais do que um bloco parlamentar, assistimos à construção de um novo bloco histórico – no sentido conferido por Gramsci -, que intenta suplantar o “lulismo” e implementar uma nova hegemonia política e social no país. Tal hegemonia se projeta como conservadora no plano moral/cultural – e a agenda parlamentar que Cunha imprimiu em 2015 não deixa dúvidas disso – e ultra-liberal em matéria econômica – bem expressa pelo documento apresentado pelo PMDB no final do ano passado, chancelado diretamente por Michel Temer. Neste último caso, uma agenda que, em nome da “modernização da economia” e do “ajuste fiscal”, planeja sacrificar direitos trabalhistas e previdenciários e diminuir os gastos públicos com as políticas sociais redistributivas, que tiveram impacto decisivo para a redução da pobreza e da desigualdade na última década.

Para a política externa, o bloco histórico liberal-conservador pretende retroceder as iniciativas integracionistas com os países da América do Sul e dos BRICS, que colocaram o Brasil num lugar de protagonista no cenário global desde a chegada do PT ao governo e o fim das negociações para a realização da ALCA. Para este bloco histórico, o modelo de integração é a “Aliança para o Pacífico” – o que, para o Brasil, teria efeitos práticos muito próximos ao que previa a estratégia da ALCA.

Por fim, também é assustadora a escalada de ódio e intolerância que domina o ambiente político brasileiro, a níveis incompatíveis com uma democracia. Só considerando a última semana, assistimos à vandalização das sedes do Instituto Lula, do PT da Paraíba, do PCdoB de São Paulo e da União Nacional dos Estudantes, a UNE. Esta última é tristemente simbólica, já que um dos primeiros atos dos golpistas de 1964 foi justamente atear fogo à antológica sede da UNE na praia do Flamengo, no Rio de Janeiro. Nas manifestações de rua do último domingo, 13 de março, os políticos dos partidos de oposição, como Aécio Neves, Geraldo Alckmin e Efraim Filho, foram fragorosamente vaiados e expulsos das ruas – justo eles, que estão entre os principais estimuladores da onda golpista que varre o parlamento.

Fazendo um balanço daquele domingo em todo o país, apenas um político presente às manifestações foi amplamente aplaudido: Jair Bolsonaro, um notório fascista e defensor da ditadura militar. Além de Bolsonaro, só mais uma personagem consagrou-se como “herói” dos manifestantes do domingo: Sérgio Moro, um juiz que, frente ao cumprimento do devido processo legal, sobretudo no que diz respeito à garantia dos direitos constitucionais dos seus investigados, prefere optar pelos vazamentos seletivos à imprensa e pelas operações de grande apelo midiático. Moro e seus aliados no judiciário formam a última peça do bloco histórico liberal-conservador.

Os métodos empregados pelo juiz Moro já foram objeto de reprimendas tanto de um ministro do STF – o insuspeito Marco Aurélio Mello, que nem de longe pode ser chamado de “petista” – como da “Associação Juízes para a Democracia”, que lançou um documento com uma máxima imponente: “não se combate a corrupção corrompendo a Constituição”. Assim, a “Operação Lava Jato”, que poderia ficar consagrada como um marco do combate à corrupção do país, tem sido antes caracterizada pelas flagrantes violações de direitos dos investigados, todas amplamente noticiados e aplaudidos pela grande mídia, artífice do golpe. Investigando seletivamente – com foco apenas no PT – e vazando para a mídia elementos da investigação muito específicos e relacionados ao PT, Moro contribui para a criação de um clima na opinião pública favorável ao golpe liberal-conservador.

Para quem acreditava que a condução coercitiva do ex-presidente Lula, com todo o aparato policial e midiático mobilizado, era o ponto máximo desta violação de direitos individuais, a subsequente divulgação pública pelo próprio Moro da gravação de uma conversa privada entre Lula e a presidenta Dilma demonstrou que o juiz não tem pudores para violar direitos e expor indevidamente a privacidade dos cidadãos que investiga, desde que contribua com o golpe.

Estamos no pior dos mundos: saíram os coronéis de 1964, chegaram os “juízes justiceiros” – ambos, jovens politizados à direita. Parodiando os “Juízes para a democracia”: a violação do Estado de Direito é a corrupção em seu ponto mais elevado.

Ao que parece, a oposição ao governo federal ajudou a chocar o ovo da serpente da extrema-direita brasileira, que agora sai às ruas e se volta não apenas contra a esquerda, mas também contra esta própria oposição. A intolerância, o discurso do ódio e a ameaça à democracia estão nas ruas. Pelo visto, no combate a esta serpente, quem terá um papel fundamental a cumprir será justamente… a jararaca! O justiceiro Moro já está certo disso.

Esta história ainda não acabou, e a capacidade de articulação política e de mobilização popular das forças progressistas terá um papel fundamental para a preservação da normalidade democrática no Brasil.

Rodrigo Freire