Sempre há outra margem

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A passagem do evangelho de São Mateus deste Domingo (cf. Mt 14,22-33) acontece “depois da multiplicação dos pães” (cf. Mt  14,13-21), relato evocador da comunidade reunida que se alimenta na fé compartilhada e na fraternidade constituída em torno de Jesus. Uma comunidade saciada, satisfeita, protegida, fechada em si mesma, com a segurança da presença providente do Senhor que sustenta a vida nessa comunidade.

Trata-se de um episódio, do qual os Padres da Igreja encontraram uma grande riqueza de significado. Na Bíblia o mar representa a instabilidade do mundo, o mundo do caos, dos poderes infernais e da morte; simboliza também a vida presente; a tempestade indica todos os tipos de tribulação, de dificuldade que oprime as pessoas. A barca sacudida pelas ondas é símbolo clássico da Igreja em dificuldades, Pedro andando sobre as águas representa o discípulo, guiado por uma fé incompleta, entre a confiança e o medo; representa cada cristão que precisa amadurecer na fé.

“Jesus mandou que os discípulos entrassem na barca e seguissem, à sua frente, para o outro lado mar, enquanto ele despedia as multidões” (v.22). Ao invés da comunidade relaxar e alegrar-se em si mesma, por ter alcançado seu ser e sentido, é tempo de ir para a outra margem. Jesus quase aos empurrões, “obrigou” os discípulos a subir na barca e esperá-lo na outra margem do lago. Se Ele vai para a outra margem, será preciso que os discípulos se disponham a ir à sua frente.

Mas, estamos dispostos a isso? Por acaso faz sentido abandonar o que construímos com tanto esforço? Não basta manter e sustentar a vida em comunidade fraterna? Não é isto o que Ele nos pede? E se conseguimos isso não é um contrassenso ir à busca da “outra margem”? Não seria melhor ficar e fortalecer o que já temos, que, por sinal é bastante precário?

Sempre há “outra margem”. Sempre há outra terra que nos chama, sempre há outras pessoas, outros mundos, outras culturas, outras sociedades, outros grupos, outras multidões, na outra margem, no outro lado, para irmos até elas… Porque Ele mesmo se dispõe a ir ao outro lado, à outra margem, então quem lhe dirá que não?

Temos muitas razões e argumentos que opor para não ir à outra margem: ainda que nós não estejamos sobre uma barca nem tenhamos que atravessar um lago, com frequência nos encontramos em uma situação semelhante à dos discípulos. Surgem dificuldades: carências pessoais, situações adversas, hostilidade e maldade. Às vezes parece que estamos completamente sós e sem possibilidade de receber ajuda de nenhuma parte.

Temos que cruzar o mar, que deixar a terra firme, quer dizer, tudo o que conhecemos e assumir o perigo de entrarmos num contexto instável, movediço, pós-moderno, incompreensível, e inclusive ameaçador; hoje a barca, que significa a Igreja, não está preparada: está velha e desgastada, frágil para essa viagem, sem as forças de outras épocas; precisamente agora que contamos com menos forças, não é melhor reforçar nossa própria margem, o “seguro”, o que já conhecemos, o que já “funciona”? E se não nos quiserem na outra margem? Se nos sentimos rejeitados não é certo que o “vento é contrário” (v. 24), sopra contra? Quem sopra contra não são os mesmos que subiram à força na barca e que não querem ir à outra margem?

Sempre há outra margem, sempre haverá aquele lugar que é arqui-inimigo de nossa Igreja: de nossos valores, de nossas ideias, de nossos modelos de vida, e que recusa nossas posições, e que por isso resulta ameaçador, como um mar embravecido que ameaça tragar-nos.

Para maior desconcerto, Jesus vem ao encontro dos discípulos “andando sobre aquelas águas turbulentas” (v. 26): não pode ser Ele, é um falso Jesus, um “fantasma”: Jesus não estaria com eles, não pode estar com esse mundo, com essas pessoas… não são os seus, não o compreenderiam, nem o acolheriam. Mas Ele está ali, avança para ali com passo firme e decidido, e em sua afirmação, derruba nossas precauções e oposições: “Coragem! Sou eu. Não tenhas medo!” (v. 27)

Então, se Ele está também ali, não há desculpa, não há pretexto: aquela margem também é sua margem. Também haverá de ser nossa margem. A ela temos que nos dirigir. Ao saber que Ele também se dirige para ali, que também ali estão os seus, que Ele também está aí, será nossa força:

“Te basta minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder” (2Cor 12,9), não importa o estado da Igreja. A Igreja se rejuvenesce cada vez que encontra novas margens, que Ele mesmo nos mandou ir. Recusá-las é morrer, é afundar-nos, deixar-nos engolir por nossos próprios ventos, nossos medos, nossas próprias negativas e recusas.

Neste dia de hoje, Jesus Cristo nos pressiona a ir à outra margem. O ser da Igreja é navegar, sempre. Sempre há outra margem. É hoje ou nunca. A Igreja que fica sempre na mesma margem acaba perdendo a perspectiva e a verdade.

Só quando os discípulos cessam em sua oposição a ir à outra margem, quando Jesus sobe à barca e o vento cessa alcançam a verdade: que Jesus é “verdadeiramente o Filho de Deus” (v. 33) afirmação que, na metade do evangelho de Mateus, como centro geográfico e significativo do mesmo, antecipa a verdade que se desvela ao final do evangelho: “de fato, este era Filho de Deus!” (Mt 27,54); verdade posta, por certo, na boca de um dos da outra margem do momento, um oficial romano. Temos de ir à outra margem para que se nos desvele e revele a verdade.

Por Padre Assis