Conto seu Abílio

Por Carlos Cartaxo - em 1 mês atrás 10

Seu Abílio Cesar de Oliveira

Há quem diga que não existe unanimidade. Mas seu Abílio era o que se pode chamar de unanimidade. Não foi por acaso que ele respondeu como o representante jurídico da cidade, sem nunca ter cursado uma faculdade. Senhor de cabelos grisalhos, altura mediana, simpático e educado, mas de uma seriedade cuja palavra ninguém ousava duvidar. Sua eloquência, fruto de um bom nível cultural, o faz o orador principal, na verdade o orador oficial da cidade de Picuí, no Seridó Oriental paraibano.

Foi professor de Português, de um colégio estadual, por muitos anos. O tempo passou e, mesmo depois de aposentado, continuou sendo a enciclopédia ambulante; o mediador referencial para as grandes celebridades intelectuais; o apoio para a realização de todas as gincanas e atividades culturais do Grupo Escolar Professor Lordão. Por muitos anos, foi uma memória viva da cidade.

Como era um leitor ávido, as mães sempre o procuravam para prescrever o nome dos recém-nascidos. Os nomes clássicos, oriundos da literatura universal, todos já sabiam que era sugestão de seu Abílio. E tem mais, a escolha não foi pesquisada. O nome da criança tinha uma relação com o histórico dos pais. Se o pai era bom de bola, o nome era Amarildo, Edson, etc. Quando era eletricista ou tinha uma profissão técnica, era Thomas, Santos Dumont, Leonardo. Se a mãe era enfermeira, era Ana Neri, Florence Nightingale. Isso fez com que uma geração inteira tivesse nomes que diferenciassem a cidade do seu entorno geográfico. A função de nomeador lhe deu notoriedade. Os jovens também se sentiram lisonjeados. É tanto que havia concorrência, mesmo implícita, para saber de quem era o nome mais bonito, mais significativo. Desde criança, todos sabiam a origem e o significado do seu nome.

Pela notoriedade, ele também tinha uma gama de afilhados. Afinal, ter seu Abílio como compadre era sinônimo de reconhecimento social. Inclusive, um estímulo ao filho para seguir o exemplo do padrinho. Dessa maneira, ele passou a ser um ícone, o cidadão mais reverenciado da cidade, mesmo sem nunca ter ocupado uma carga executiva ou legislativa.

Como pai, escolheu o nome mais justo e simbólico para seu filho: Jesus. Garoto alvo como um anjo. Eduque-o, como se fosse um senhor inglês, para seguir uma educação rigorosa e tradicional. Como consequência, Jesus gostava muito de ler. Na escola não era destaque nota dez, mas sempre acompanhava os conteúdos com bastante afinco e tinha bom desempenho, para orgulho do pai.

Seu Abílio fez questão de que Jesus participasse de todas as manifestações culturais da cidade. Era na quadrilha junina, na comemoração do Sete de Setembro ou no bloco de carnaval. Ele, com seus amiguinhos, participou do movimento cultural, de passeios ciclísticos e viveu uma infância feliz.

Claro que uma das primeiras bicicletas a desfilar pelas ruas de Picuí foi a de Jesus. Era simplesmente lindo! A cidade parava para vê-lo deslizar pelas vias calçadas ou de barro, rua a baixo, rua acima. Espelhados no presente de Jesus, a garotada vivia no pé do ouvido dos pais querendo uma bicicleta também. O que não deu outra, poucos meses depois, a turma das bicicletas desbravava a cidade de ponta a ponta.

Apesar de toda educação recebida e dos cuidados de seu Abílio, Jesus foi crescendo e se tornando muito independente, o que começou a ser motivo de preocupação. Chegou à adolescência; o momento de muita cautela no que diz respeito à educação. Certo domingo, Jesus demorou muito para ir almoçar. A delonga incomodada um desconforto no pai, que o esperava na esquina da rua, suado e impaciente. O freio aconteceu quando a bicicleta apareceu na outra esquina. Seu Abílio foi recebê-lo e, em um relacionamento, sentiu cheiro de álcool. Fez-se de descompreensão, mas depois do almoço levou Jesus para um quarto e fez uma sabatina. O filho prometeu que nunca mais beberia cachaça.

Na verdade, por muito tempo Jesus se comportou como um garoto adolescente de excelente conduta. Álcool, jamais! Passou Natal e Ano Novo, e Jesus só tomava gasosa. Embora houvesse quem dissesse que à noite, escondido com os amigos, Jesus andava tomando vinho, algo muito leve, muito suave, nada comprometedor. Dessa forma, Jesus estava ganhando pontos para que o prometido ao pai fosse cumprido, logo recompensado, ganhando as férias na capital do Rio Grande do Norte, desfrutando do tão sonhado banho de mar.

O acordo foi para Jesus só viajar depois dos festejos do carnaval. Nesse tipo de evento, que possibilitava uma liberdade perniciosa, segundo seu Abílio, o mesmo tinha que estar às vistas do pai. A viagem de férias já estava sendo programada, assim como a participação nos blocos carnavalescos dos jovens adolescentes da cidade.

O carnaval era bem organizado, havia corso com blocos de rua e blocos para o carnaval da sociedade no clube. Os papangus animavam as ruas. Havia certo investimento das famílias na participação dos filhos porque era, geralmente, quatro dias de folia, quando a cidade participava de forma efetiva, independentemente da classe social, fosse na rua ou no clube.

O sábado era o dia de feira na cidade. Mesmo assim, a folia começou cedo com os desocupados e os papangus tomando cachaça e brincando com farinha de trigo ou maisena e água. O desfile oficial de rua só começou às 16 horas. A cidade parava. A criançada e os jovens desfilavam em cima de jipes e camionetas com batucadas. Cada bloco esbanjava, como numa competição, a beleza da sua fantasia. Muito talco, farinha de trigo, água e alegria. Eram Reis, Rainhas, Zorros, índios, piratas… uma gama enorme de personagens para alegrar as ruas da cidade.

No domingo, a festa começava mais cedo. Às dez horas da manhã, já havia folia nas ruas. E Jesus, como bom folião adolescente, vestido com bermuda colorida, blusa listra e boné branco pegou sua bicicleta e desapareceu pelas ruas da cidade. Subia e descia ladeira sem demonstrar um pingo de cansaço. Acompanhava um bloco aqui outra acolá juntamente com um grupo de amigos ciclistas. Ao meio dia, o jovem, que tinha esquecido o tempo, ainda não havia aparecido para almoçar, o que deixou seu pai deveras preocupado. Em casa, seu Abílio, impaciente, caminhava de dentro para fora e, a cada cinco minutos, ia à janela. À uma hora da tarde, com o almoço ainda posto à mesa, ele não resistiu e foi à procura do filho. Foi à farmácia do compadre Severino Fernandes e não obteve notícias de Jesus. Foi à sinuca e ninguém sabia do paradeiro do garoto. Ofegante, cruzou a rua e foi à delegacia. Lá encontrei o cabo Anselmo cochilando, sem coturnos, só de meias, com os pés em cima da mesa. Ao acordar e se separar com seu Abílio, se recompôs, pediu desculpas e prontamente se dispôs a sair à procura do bom menino. Desesperado, saiu perguntando a um e a outro sobre o paradeiro de Jesus. A cidade inteira já sabia do sumiço do adolescente. Por volta das duas horas da tarde, seu Abílio, no extremo da preocupação, suado e transtornado, encontrou Chico Cândido, membro espirituoso da filarmônica municipal, e foi logo fazendo a pergunta que todos já conheciam:

— Chico, você viu Jesus?

Sem pressa e sem se preocupar com o que dizia, Chico Cândido subiu na calçada. Pensativo, continue ajeitando os botões da camisa, como quem quer se apresentar decentemente para aquele homem respeitável. Reposicionou o chapéu suado na cabeça. Viu, pelo semblante, que aquele senhor estava deveras nervoso, sem limite de sua paciência. Mirou seu Abílio no olho e, de forma didática, com a calma e a paciência que lhe era peculiar respondeu:

— Seu Abílio, Jesus não aparece na Semana Santa, imagine sem carnaval.

Conto publicado no livro Contatos, de 2014, p. 11 – 15.

Referência:

CARTAXO, Carlos. Contatos. João Pessoa, Editra do CCTA, 2014.

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