Jesus, imagem de um Deus sendento
Por - em 5 anos atrás 1078
A Quaresma segue sendo esse simbólico itinerário de nossa conversão para Deus e para os irmãos, caminho de purificação que nos ajuda a renovar a graça do nosso Batismo na festa pascal.
Com a reforma litúrgica do Vaticano II, a Quaresma recobrou o significado que teve a partir do século IV em relação à “iniciação cristã”. A contemplação nos III, IV e V Domingos das três leituras de João, capitulos 4 (a samaritana), 9 (a cura do cego de nascença) e 11 (a ressurreição de Lázaro) respectivamente, caracterizam a “quaresma joânica”, quaresma batismal-penitencial e nos ajudam a conhecer a pessoa de Jesus, água viva, luz do mundo e a verdadeira vida.
A água, símbolo da vida e da sede de Deus, marca este Domingo centrado neste simbolismo. A experiência dela jorrando da rocha golpeada por Moisés para saciar a sede do povo no deserto (cf. Ex 17,3-7), mas, sobretudo, o encontro de Jesus com a samaritana (cf. Jo 4,5-42) revela passo a passo toda a dimensão pascal. Por esse motivo desde as origens das comunidades cristãs, este episódio assume uma importante função na catequese de iniciação à vida cristã.
Assim como o deserto ou a montanha, o poço, cenário do encontro de Jesus com a samaritana (cf. Jo 4, 5-42) tem um valor simbólico. “O poço, desde o Antigo Testamento, é um lugar de encontros que suscitaram belas experiências de comunhão amorosa.” (CNBB, doc. 107) O poço era o ponto de encontro das pessoas e junto ao poço se encontravam os pastores que vinham matar a sede dos seus rebanhos; paravam os comerciantes com suas mercadorias para aguardar os clientes; ao poço vinham as mulheres para buscar água, até o poço vinham os namorados procurando uma companhia.
Junto ao poço de Sicar, Jesus e uma mulher samaritana se encontram e falam sobre a vida. Jesus passa por um território de herejes, como eram condiderados os samaritanos pelos judeus ortodoxos. Trata-se de uma velha história de ódios e rancores por causa da religião. Por seu sincretismo religioso, os samaritanos eram desprezados pelos judeus que evitavam qualquer contado com eles. Mas Jesus passa por cima dessas barreiras e preconceitos.
“Dá-me de beber!” (v. 7) Jesus cansado e sedento, descansa na beira do poço e espera que chegue alguém e lhe dê de beber, pois não tem com que tirar a água; chega uma mulher da Samaria também com sede para tirar água. Duas pessoas sedentas de água, possivelmente também sedentas de algo mais que água.
Jesus quer revelar-se àquela mulher, quer encher de água viva o seu coração que está cheio de “maridos” e, no entanto ela cntinua sedenta de algo mais que possa apagar a sede que seus maridos não conseguiam. Àquela mulher samaritana, Jesus vai mostrar uma sede diferente, o desejo de livrá-la de seu vazio e de sua sede:
“Como é que tu, sendo judeu, pedes de beber a mim, que sou uma mulher samaritana?” (v. 9) diz ela totalmente surpresa, pois naquela cultura, era incomum um homem pedir água para beber a uma mulher, mais ainda samaritana.
O evangelista João apresenta-nos Jesus como um profeta que sabe acolher, dar de beber é simbolo do acolhimento, um profeta que sabe dialogar a sós com uma mulher pertencente a um povo impuro, odiado pelos judeus. Um homem que sabe escutar a sede do coração humano e restaurar a vida das pessoas. Será que a Igreja é capaz de como Jesus acolher, sentar com as pessoas mais solitárias e maltradadas e escutar o seu sofrimento, desespero ou solidão?
“Como Jesus no poço de Sicar, também a Igreja sente que deve sentar-se ao lado dos homens e mulheres deste tempo, para tornar presente o Senhor na sua vida, para que possam encontrá-lo, porque só o seu espírito é água que dá a vida verdadeira.” (CNBB. Doc. 107) Precisamos ser profetas da misericórdia de Deus, como Jesus que atraía as pessoas para a vontade do Pai, revelando-lhes o seu amor compassivo e o melhor caminho para saciar a sede de felicidade.
O diálogo de Jesus com a samaritana é um diálogo com alguém que carrega às costas não somente um cântaro vazio, mas o peso de preconceitos seculares, adversidades, diferença, contraste.
O peso de suas buscas, de seus amores vazios, de suas infidelidades, desilusões e insatisfações. “Jesus disse: Disseste bem, que não tens marido, pois tiveste cinco maridos, e o que tens agora não é o seu marido…” (vv. 17-18) O “cântaro” também representa aquilo que dá acesso às propostas incompletas de felicidade.
“Se tu conhecesses o dom de Deus e quem é que te pede: Dá-me de beber, tu mesma lhe pedirias a ele, e ele te daria água viva.” (v. 10) Jesus oferece uma “água viva”, mas não lhe fala apenas da “água viva”,
Ele vai escavar o “chão interior” daquela mulher, vai ampliar o espaço do seu coração para que o manancial ali presente, “uma fonte de água” tenha a chance de emergir, jorrar e dar um novo sentido à vida dela. Então vai acontecer uma inversão total, a samaritana é quem passará a ter sede e pedirá: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede e nem tenha de vir aqui para tirá-la… Então a mulher deixou o seu cântaro e foi à cidade…” (vv. 15.28)
Abandonar o “cântaro” significa que a samaritana vai romper com todos os esquemas de procura de felicidade egoista, parcial, incompleta. No final da cena, o cântaro ficará esquecido junto ao poço, ele é inútil para conter uma água viva. E os dois, Jesus e a mulher, terminam esquecendo-se da água, do poço, do balde e do cântaro.
Duas vidas que se encontram e se comprometem: Jesus, que vai abrindo caminho para chegar ao profundo daquele coração feminino; a mulher que resiste, mas, aos poucos, se abre às palavras daquele homem imprevisisvel, “que me disse tudo o que eu fiz. Será que ele não é o Cristo?” (v. 29); Jesus, que vai desvelando a mulher que começa a sentir o borbulhar de uma “fonte” que jorra em seu coração, encontrando-se com a verdade de si mesma; Jesus que vai se esquecendo do poço e vai abrindo uma nova fonte naquele coração de mulher; a mulher que se esquece, da sede, da água e do cântaro e “foi à cidade” gritando o que seu coração encontrara.
“Não há homem nem mulher que na sua vida, não se encontre, como a mulher da Samaria, ao lado de um poço com uma ânfora vazia, na esperança de encontrar que seja satisfeito o desejo mais profundo do coração, o único que pode dar significado pleno à existência.” (Mensagem ao Povo de Deus, XIII Assembleia Geral Ordinária do Sinodo dos Bispos (2012)).
No mais profundo de nosso ser, somos habitados como aquela mulher, por uma sede que nenhuma água pode saciar: sede de sentido, de plenitude, de felicidade, de vida… A samaritana ia todos os dias ao poço por causa da sua sede. A água do poço é o símbolo de todas as satisfações materiais, de todos os prazeres que procuramos, na esperança de encontrar neles a felicidade, mas no fim é água estagnada que deixa sempre muito vazio e mais desilusão, um sabor amargo na boca.
Mas há uma realidade ainda mais grave, as pessoas já não sentem mais sede de Deus, que decidiram viver sem necessidade de Deus. A pessoa que não sente sede de Deus, não busca a Deus, busca matar sua sede em outras fontes. Sede sempre teremos, desde o momento mesmo em que começamos a sentir e a pensar. Mas, nem toda sede da alma é sede de Deus e, quando não é Deus o que sacia nossa sede, tentamos saciá-la em poços efêmeros e quase sempre contaminados.
Jesus sedento junto ao poço de Jacó é a viva imagem de um “Deus sedento”, que ama a humanidade até morrer de sede por ela: “Tenho sede” (Jo 19, 28). A esponja molhada em vinagre não conseguirá apagar essa sede. Ele morrerá com sede.
Junto ao poço, nossa sede e a sede de Deus se encontram. Sua sede de justiça, de misericórdia, de compaixão… “Dá-me de beber”, esse apelo do Deus sedento continuará a ressoar no nosso eu mais profundo. Poderíamos lhe dizer: com a sede que temos, ainda nos pedes para saciar a tua sede? A resposta não se faz esperar: é Deus quem tem sede de nós, é Jesus que nos convida a partilhar de nossa água com Ele.
Por Padre José Assis Pereira