Humanidade e eternidade

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Na sua liturgia, a Igreja vive o período quaresmal que, na verdade, pertence ao Ciclo da Páscoa, uma vez que nela tudo converge para a celebração da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. A humanidade se vê em Jesus porque Ele a assumiu, efetivamente, excetuada a sua condição pecadora. Em razão do amor misericordioso de Deus, a humanidade é chamada a participar de uma vida que tem vocação de eternidade. A cada ano, a espiritualidade quaresmal coloca a humanidade de Jesus à contemplação dos fieis. Nele, enxergam a dimensão eterna de sua própria existência. Os dois primeiros domingos da Quaresma têm essa linguagem.

No primeiro Domingo, a liturgia sempre apresenta a passagem referente às tentações de Jesus. Este ano, a narração está no Evangelho de Mateus (4, 1-11). É importante que todas as pessoas identifiquem sua semelhança com Jesus, no tocante às tentações. Em qualquer contexto e circunstância, a tentação é sempre uma proposta enganosa. Com o chamariz de uma imaginação fantasiosa, a tentação encobre o lado da maldade, que lhe é subjacente, uma vez que, por natureza, fere princípios morais, atinge direitos e oculta deveres que dizem respeito às pessoas, à família e à sociedade. De fato, quando se cede à tentação, o mal causado atinge a própria dignidade e a dignidade alheia. Toda pessoa tem a noção exata do que seja a tentação, qualquer que seja o seu tipo, como, por exemplo, corrupção, droga, infidelidade. O fenômeno da corrupção de políticos e empresários é assunto do dia a dia; este livro vem sendo escrito no Brasil, há muito tempo, com capítulos atualizados que, aos poucos, chegam ao conhecimento da população. A iniciação ao uso das drogas, em muitos casos, deu-se a partir de uma proposta não descartada com firmeza; curiosidade nesse campo é um passo na direção do envolvimento, da dependência. No terreno da infidelidade entre namorados, noivos e esposos, a não superação da tentação deixa feridas profundas, não cicatrizadas, em muitos casos. Felizmente, há referências importantes na vida das pessoas que, com força de vontade, decidem enfrentar suas tentações: o bem comum, a sua dignidade, a sua família.

No segundo Domingo da Quaresma, também conforme a narração do Evangelista Mateus, (17, 1-9), a transfiguração no Monte Tabor representa a visão da glória eterna, quando Jesus, na companhia de Pedro, Tiago e João, falava com Moisés e Elias. Essa experiência foi marcante na vida dos Apóstolos, como antecipação da “vida do mundo que há de vir”, como reza o “Símbolo Niceno-Constantinopolitano”. É necessário perceber que, como aconteceu com Jesus, a superação das tentações humanas está relacionada com a experiência do encontro com Deus. A espiritualidade do Tabor, vivenciada intensamente pelos três Apóstolos, será uma força de sustentação para os fiéis, diante de suas próprias tentações. Jesus associa a superação da tentação à prática da oração, como ensina no Pai Nosso: “e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal”. De fato, como a tentação é inerente à condição humana, Jesus não pediu ao Pai que seus discípulos não fossem tentados. Pediu, sim, que não se deixem enganar pela miragem da tentação.

A espiritualidade da Quaresma dá aos cristãos a consciência de que sua humanidade não pode desnortear seu olhar da eternidade.

Dom Genival Saraiva