O que é o tempo para nós cristãos

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Ao despedirmo-nos do ano civil que se encerra e encaminharmo-nos para o novo, na liturgia da igreja católica se entrelaçam dois aspectos diferentes: um evento comum a todos, o final do ano civil e outro, próprio para os cristãos católicos, a solenidade litúrgica de Maria, Mãe de Deus, que conclui o que nós chamamos “oitava do Natal”. Esta convergência de eventos confere a esta celebração um clima espiritual que nos convida à reflexão e a meditação.

“Refletir” é fazer retroceder e “meditar” quer dizer: submeter a um exame interior, confrontar ou unir realidades. Supõe uma atividade mental e uma atitude do espírito que cria síntese, que tenta encontrar uma lógica em meio a coisas ou situações aparentemente sem nexo. Estas últimas horas são de retrospectiva e reflexão, de lançar um olhar sobre o tempo que se vai e para aquilo que está para vir.

O poeta Ferreira Gullar (1930-2016) no poema “Ano Novo” nos fala desta hora em que nenhuma mudança é perceptível a não ser com o olhar interior, do coração:

“Meia-noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.
[…] nada ali indica
que um ano novo começa.
E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração…

Por um momento, damo-nos conta desta realidade estranha, o “tempo”. Mas, o que significa para nós cristãos o tempo? Santo Agostinho disse aos seus contemporâneos que se queixavam dos tempos maus: “os tempos – nós mesmos os somos”. Com essa constatação, Agostinho não só se quis opor ao pessimismo dos descontentes, mas, sobretudo também a uma tradição pagã antiquíssima. Entre os gregos o deus “Cronos” ou “Saturno”, simboliza o tempo, é a divindade que devora cruelmente os seus próprios filhos, tal como o tempo devora todos os instantes ou destrói tudo o que ele próprio cria.

Joseph Ratzinger disse que: “Onde o tempo se torna o senhor do homem, este se torna escravo… Jesus Cristo é a vitória sobre o Cronos, um homem que teve tempo para Deus, libertando assim os homens da ditadura do tempo… Não deveríamos tornar a fazer a tentativa de libertarmos o tempo para Deus, de fazermos o tempo ser de Deus?”

Na opinião do Apóstolo Paulo: “Quando se completou o tempo previsto, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à lei, a fim de resgatar os que eram sujeitos à lei.” (cf. Gl 4,4-7) Assim o nascimento de Cristo marca o início da plenitude dos tempos, ou seja, o momento culminante da história do universo e do gênero humano, o acontecimento que mudou o curso da história, quando o Filho de Deus nasceu no mundo.

Na expressão: “nascido de mulher” encontra-se resumida a verdade fundamental sobre Jesus como pessoa divina, que assumiu completamente a nossa natureza humana. Ele é o Filho de Deus, é gerado por Ele e, ao mesmo tempo, é filho de uma mulher. Ele provém dela. É de Deus e de Maria. Por isso a mãe de Jesus pode e deve chamar-se “Theotókos” palavra grega que quer dizer “Mãe de Deus”, expressão que aparece pela primeira vez na primeira metade do séc. III.

A Carta aos Gálatas ainda exortou os fiéis que eram tentados a voltar novamente “às práticas da lei Mosaica”, como se nelas, em vez de Cristo, estivessem a sua segurança e salvação. A liberdade dos cristãos está em viver livres dos temores, “confiantes em Deus”: Paulo vai logo às consequências: “já não és escravo, mas filho”, portanto, não se deixem escravizar novamente! E o diz em dois sentidos: não abandonar a graça da fé em Cristo, para submeter-se de novo a práticas que escravizam e tiram a liberdade de filhos de Deus, mediante uma religião do temor, ou feita apenas de práticas humanas, sem contar com a graça de Deus e a ação do Espírito de Cristo; ou então, deixar-se escravizar pelas paixões humanas desordenadas e pelos vícios.

A passagem de um ano para o outro no Brasil é marcada pelos momentos de confraternização em família e amigos, também as festas em diversas cidades e praias e a tradicional e caríssima queima de fogos de artifício, celebrando a chegada do novo ano. Mas outras práticas que marcam este momento são as diversas superstições visando realizações, felicidade, sucesso, paz, conquistas e muito dinheiro. A felicidade, o sucesso será alcançado, de acordo com esses costumes, caso sejam comidos determinados alimentos, depende da cor da roupa ou de gestos como “pular sete ondas” que devem ser repetidos quando da “hora mágica” da passagem do ano. Mas para os cristãos, o que significa esta prática?

Existe na humanidade certa amnésia cristã. O fenômeno humano da amnésia também pode ser notado na sociedade.Existem certos sintomas preocupantes: cristãos que não lembram ou não sabem nada sobre a fé cristã e ficam presos a práticas pagãs ou meramente supersticiosas, como as que se revelam nestas últimas horas do ano; cristãos que ignoram as grandes etapas da história da salvação, inclusive os grandes mistérios de Cristo… A Igreja perdeu memória em muitos de seus filhos, para recuperá-la, só existe um caminho: criar o gosto da lembrança, fazer com que as novas gerações valorizem o extraordinário tesouro da tradição cristã, ajudá-los a rememorá-la com a consciência de que no passado estão as sementes que florescem no presente.

As práticas supersticiosas como as paixões humanas ou vícios escravizam um considerável número de pessoas que se dizem católicas e que recorrem a tais superstições e costumes, às vezes até com certa dose de sincretismo religioso. Acreditam assim que a solução dos problemas vêm de forças ou energias desconhecidas, poderes misteriosos capazes de espantar os acontecimentos maus ou espíritos malfazejos.

O Catecismo da Igreja Católica alerta para as superstições, no parágrafo 2111 afirma: “a superstição é o desvio do sentimento religioso e das práticas que ele impõe. Pode afetar o culto que prestamos ao verdadeiro Deus, por exemplo, quando atribuímos uma importância de alguma maneira mágica a certas práticas”.

Há cristãos que vivem como se o Batismo nada tivesse modificado em suas vidas: vivem como se não fossem cristãos, imitando os costumes dos pagãos. Ou pode haver aqueles que procuram praticar a religião apenas de forma exterior e ritual, sem disposições interiores, sem que a orientação de sua vida e seu comportamento sejam impregnados por Cristo e pelo seu Evangelho.

Volto ao Apóstolo Paulo: “Outrora, é verdade, não conhecendo a Deus, servistes a deuses, que na realidade não o são. Mas agora, conhecendo a Deus, ou melhor, sendo conhecidos por Deus, como é possível voltardes novamente a estes fracos e miseráveis elementos aos que vos quereis escravizar outra vez?” (Gl 4,8-9); “Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim.” (Gl 2,20) O viver e o ser cristão é uma proposta de vida nova, orientada pelo Espírito de Cristo. Isso requer a libertação ou superação das superstições pagãs, dos temores, dos vícios e das práticas contrárias ao amor a Deus e ao próximo, ou contra a própria dignidade humana.

Somos chamados a viver estas últimas horas do ano tornando nossos os sentimentos da “Mãe de Deus” que “guardava todos esses fatos e meditava sobre eles em seu coração.” (cf. Lc 2, 16-21) Maria registrava na memória os fatos presenciados, não como um “banco de dados”, mas, buscando seu sentido profundo, para além das aparências. É o papel do teólogo que discerne a presença de Deus nos fatos obscuros da vida. Maria é, pois, como toda pessoa que precisa discernir em meio aos acontecimentos, em nossa história, a presença solidária do Deus conosco. Ela resgata, portanto, a memória das ações de Deus no passado e no presente da caminhada do povo, convidando as pessoas a não perder de vista nenhum acontecimento, alegre ou triste, percebendo como Deus se solidariza com seu povo.

Juntamente com Maria, somos convidados a conservar nosso olhar fixo no Menino Jesus, novo sol que surgiu no horizonte da humanidade e, confortados por sua luz termos o cuidado de lhe apresentar “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angustias da humanidade hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem” (Gaudium et Spes, 1).

Nestas últimas horas do ano, curemos nossa amnésia cristã e recordemos tudo que nesse ano foi sinal da bênção e da graça de Deus em nossas vidas e na nossa história e nos apressemos em agradecer ao Senhor pela salvação que se concretiza no dom da paz, da abundância e da felicidade.

Por Padre José Assis Pereira