Um tratamento diferente

Por - em 8 anos atrás 746

Uma mulher cheia de vida. Sempre com um largo sorriso nos lábios e uma palavra afetuosa para se dirigir ao outro. Aliás, nela a vida explode em rasgos vigorosos de autoestima. Beijar a própria mão e repetir sempre a mesma frase: “eu me amo”, era para mim um gesto subjetivo de reconhecimento à dádiva da própria vida.

Uma mulher de muita fé. Apesar da convivência inconveniente com uma enfermidade de difícil tratamento e de etiologia complexa, ela jamais se deixou abater. Nos momentos mais drásticos, em que a síndrome se agudizava, dos seus lábios brotavam palavras de esperança e de determinação. Ela é uma guerreira que sempre lutou pela vida, agarrando-se à fé, inabalável.

Uma mulher de atitudes leves. Apesar de se destacar na profissão que exerceu ao longo dos anos, nunca permitiu que a vaidade, a soberba ou o orgulho, dominassem o seu espírito. A singeleza dos seus atos e a amabilidade da sua voz, suave e melodiosa, sempre envolve a todos.

Certamente, não tento dizer que ela é uma mulher perfeita. Afinal, a perfeição é atributo divino. Nós, humanos pecadores, apenas somos uma expectativa da Bondade do Pai Celestial. Um reflexo distorcido, na maioria das vezes, da semelhança com Deus. No entanto, apesar dos defeitos inerentes à condição humana, ela é especial, pela forma por meio da qual agiganta o seu corpo franzino, por gestos de carinho e de afeto.
Há mais de quarenta dias se encontra num leito de UTI, lutando por algo que para ela sempre foi fundamental: a vida.

Tive oportunidade de visitá-la neste leito de sofrimento. Penso que o estado de sedação cria um contexto paradoxal. Por um lado, afastam do corpo físico as dores e os sofrimentos inerentes ao quadro da agudizada enfermidade. Por outro, cria um contexto em que nós, os visitantes da UTI, não sabemos ao certo se ela está percebendo a nossa presença, ou se está em repouso e tratamento numa dimensão insondável, que a própria ciência desconhece.

Por poucos minutos estive ao seu lado. Confesso que não sabia ao certo o que fazer nesses breves instantes. O sofrimento do corpo físico que se fazia grave ante meus olhos, me deixou num estado de confusão. O que fazer neste momento?

Tentei conversar. Disse algumas frases. No entanto, eram soltas e desconexas. A emoção castrava a minha capacidade de raciocínio. Fechei os olhos, a fim de me isolar momentaneamente daquele cenário hospitalar, onde cada leito da UTI representava uma dor, um sofrimento, que apesar de singular, se pluralizava, no sofrimento que reverberava no coração dos familiares, principalmente. Fechei os olhos para me distanciar do mundo e me aproximar de Deus.

Sequer consegui fazer uma oração daquelas decoradas, que aprendemos nos catecismos da infância. As frases não se completavam. Não consegui estabelecer a necessária conexão entre a criatura e o Criador. Alicerçado na minha crença, sabia que naquele momento o melhor medicamento que eu poderia agregar ao tratamento dela, era o bálsamo revigorante, advindo das Mãos Bondosas de Deus.

No entanto, o quadro de sofrimento que estava diante dos meus olhos, turvou a minha própria capacidade de conexão com as forças superiores. Por um momento, parecia que as dores da Terra me prendiam e me impediam de invocar a intervenção do Pai Celestial, em favor dela.

Subitamente, por razões que desconheço, começo a cantar. Uma dessas canções religiosas que falam do poder de Deus e da força Soberana que Ele exerce em nossas vidas. Eu cantava, quase sussurrando ao ouvido dela: “Deus está aqui neste momento. Sua presença é real em meu viver. Entregue sua vida e seus problemas. Fale com Deus, Ele vai ajudar você”.

Um contexto de energias inefáveis invadiu aquele leito de dor. Por alguns instantes, não predominou em minha mente o quadro de aguda gravidade. Ao contrário, fui sendo tomado por uma sensação de leveza e de emoção, que se faziam presente, até pelo arrepio da pele intangível da minha alma. Por um momento, onde havia sombras de tristeza e de dor, passou a existir, luz de alegria e de paz indescritível.

Embevecido por um estado de espírito positivamente diferenciado, segui a canção, sussurrada ao ouvido dela: “Deus te trouxe aqui. Para aliviar o teu sofrimento. É Ele o autor da Fé do princípio ao fim. Em todos os seus tormentos”.

Por breves momentos, tive a certeza de que de alguma forma inexplicável, Deus agia sobre o corpo físico e sobre a alma dela, trazendo algum tipo de refrigério, muito mais eficaz do que as doses incomensuráveis de antibióticos e outros medicamentos, subministrados diariamente.

Com os olhos levemente fechados, eu continuava a canção, sempre envolvido por este sentimento de energias positivas e inefáveis: “E ainda se vier noites traiçoeiras, se a cruz pesada for Cristo estará contigo. E o mundo pode até fazer você chorar, mas Deus te quer sorrindo”.

Sinto a aproximação de uma pessoa. Era a médica. Ela me acenou, silenciosamente, sugerindo que eu continuasse a canção. Aceitei o comando.
Algo inusitado para mim aconteceu: o equipamento que marca os batimentos cardíacos anunciava uma leve aceleração, como a expressar um sinal de que ela percebia, de alguma forma, o que estava ocorrendo. Apesar do tubo que cria naturais obstáculos à fala, aliado ao estado de torpor, ela tentou expressar com a voz alguma mensagem. Será que estava desejando cantar comigo? Esta resposta eu tenho a esperança que ela mesma me responda, brevemente.

Finda a canção, a médica ao meu lado me convida para sair do recinto da UTI e afirma: “apesar do quadro dramático, você trouxe nesta manhã um medicamento que não dispomos aqui no hospital”. Finalizou fazendo um sinal de agradecimento a Deus. Para mim, a atitude da médica era uma forma da própria Ciência reconhecer o Poder de Deus.

Em silêncio, deixei a UTI.

Com os olhos de mente, enxerguei o sorriso aberto e sutil que sempre marcou o rosto dela, transmitindo uma frase emocionada: obrigado, primo.

Por Flávio Romero